São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Urgência para a política industrial

LUCIANO COUTINHO

Lentamente a política industrial começa a ganhar forma com as recentes iniciativas de redução dos custos de capital (diminuição do IPI, redução da taxa de juros de financiamento para equipamentos através dos programas Modermaq, Moderfrota e Modercarga). Além disso, novas medidas horizontais estão em discussão, tais como a Lei da Inovação e uma política de atração de investidores estrangeiros. A Lei da Inovação é de alta relevância, considerando o grande atraso brasileiro nesse campo até mesmo em comparação com outros países em desenvolvimento.
Esse avanço no plano das medidas horizontais trará efeitos sistêmicos positivos, mas é insuficiente. É necessário, além de maior velocidade, um tratamento por cadeias, explícito, a um conjunto amplo de setores, e não apenas às quatro áreas selecionadas como prioritárias para políticas estruturantes (bens de capital, software, microeletrônica e fármacos).
Uma política industrial setorial ou articulada por cadeias é imprescindível ante as especificidades das configurações destas: extensão e articulação dos elos, riscos de mercado, intensidade de capital/tecnologia, economias de escala/escopo/aprendizado e existência de externalidades positivas/negativas. No caso brasileiro, é conveniente contemplar quatro grupos de cadeias produtivas: as com deficiências e potencial competitivo, as cadeias competitivas, as cadeias com alta participação de empresas estrangeiras e as cadeias intensivas em inovação tecnológica a serem estruturadas.
No primeiro grupo (bens de capital seriados, petroquímica, transformados plásticos, construção naval, têxtil e confecções, mobiliário, cerâmica de revestimento e outros), as cadeias sofreram as conseqüências da longa estagnação do mercado interno e/ou ainda não completaram os processos de reestruturação iniciados após a abertura comercial. O desafio é investir para a reestruturação produtiva, modernizar a governança, realizar fusões e aquisições para obter economias de escala e avançar em capacitação tecnológica e na formação de redes de cooperação. O apoio à internacionalização das empresas líderes deve ser considerado. Mas, antes, é necessário promover a capitalização e a mudança do modelo familiar-patrimonialista. Para certas cadeias, é essencial incentivar a inovação e fomentar a coordenação mesoeconômica (arranjos produtivos locais e/ou especializações regionais).
O segundo grupo abrange cadeias que já têm desempenho exportador consagrado. São as do agronegócio (café, celulose e papel, cítricos e fumo), as intensivas em mão-de-obra (couro e calçados) e as intensivas em escala/capital, como a mineração e a siderurgia. O principal desafio é ampliar a sua atuação global para reforçar o superávit comercial, driblando os obstáculos protecionistas e melhorando a qualidade dos produtos com agregação de tecnologia/valor. É urgente ampliar a capacidade produtiva e promover a internacionalização das empresas brasileiras que lideram essas cadeias, o que significa investir em logística/distribuição e marketing para penetrar e operar em mercados externos.
No terceiro grupo, as empresas estrangeiras lideram cadeias produtivas de bens com alto valor agregado: automobilística, autopeças, bens eletrônicos de consumo, equipamentos de telecomunicações, bens de informática e indústria farmacêutica. Essas empresas foram responsáveis por parcela importante do déficit comercial nos anos 90 por causa do aumento das importações de equipamentos, de matérias-primas e de componentes. O desafio é reverter a contribuição deficitária dessas cadeias à balança comercial e de serviços, valorizando a plataforma brasileira na divisão global do trabalho intra-empresa, atraindo para as filiais sediadas no país novos produtos/ sistemas e atividades tecnológicas mais nobres. Para isso, é necessário manejar os instrumentos adequados (tratamento tributário, aduaneiro, tarifário, infra-estrutural, regulatório), bem como monitorar os novos ciclos de produto para identificar as oportunidades.
O quarto grupo -cadeias/setores vitais à inovação e difusão do progresso técnico- já está contemplado no atual projeto da política industrial. A criação de novos elos competitivos pode se basear em estratégias de "leapfrogging" de empresas nacionais já estabelecidas ou na atração de empresas estrangeiras. A política tecnológica é crucial para o desenvolvimento desses setores e, por isso, é essencial preservar a margem de manobra brasileira para programas de "indústria nascente" (ante as restrições dos acordos Trips e Trims).
É escusado reiterar que a política industrial (tecnológica e de comércio exterior) e a política macroeconômica devem ser convergentes. A sintonia fina com o Ministério da Fazenda é imprescindível. Finalmente, para não pressionar o superávit fiscal, a política industrial tem de ser intensiva em financiamento e capitalização a custos reduzidos, o que representa um desafio para o BNDES e para o sistema financeiro. Além disso, não pode prescindir de uma Lei da Inovação que dote o país de instrumentos fiscais e financeiros similares aos utilizados nos países desenvolvidos.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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