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LUÍS NASSIF
O mal que um dia acaba
Meus dois melhores amigos
estão desempregados. À
minha volta, por onde olho, vejo o
desemprego. Com ele, o desalento,
a sensação de fracasso, especialmente de pais obrigados a diminuir o padrão de vida dos filhos.
Outro dia conversei com um pai
que precisou tirar os filhos de um
colégio particular para colocá-los
em uma escola pública. No meu
tempo, significava perda de status. Hoje em dia, é perda de formação.
É estranho o processo de desemprego na classe média. Ao contrário das classes mais pobres, não se
passa o supremo martírio da fome, da falta de teto. Sempre há
um bico para se virar, um parente
a quem recorrer.
Com as classes populares, o jogo
é outro. Outro dia, no prêmio
Ayrton Senna, concorreu uma foto de Pernambuco, de um despejo
comandado pela Polícia Militar.
No primeiro plano, uniformes e
cassetetes emoldurando a cena
principal, de um negro, alto, forte,
olhos fechados, crispados pela impotência, carregando uma filha
no colo, com a mão direita, a esquerda abraçando outra filha,
que chorava desesperada. O educador Rubem Alves reparou no
detalhe significativo, de que o
braço do pai abrigava a menina,
e a mão, calejada, tocava delicadamente seu braço.
Com a classe média o drama é
diverso, mas o sentimento de impotência é similar.
Quando meu pai deu início à
venda de seus bens, toda semana
ia à casa da minha tia Zélia para
jantar e ouvir as últimas notícias
de Poços. Só havia más notícias. A
venda da chácara, da casa do tio
Léo, do carro, da casa nossa, depois da farmácia. Nesse meio
tempo, as irmãs mais novas tendo
que sair do Colégio São Domingos, de classe média, para uma escola pública de São Paulo. Depois,
um período morando com nossos
avós.
A notícia das meninas sendo tiradas da classe do colégio por falta de pagamento, depois a vinda
para São Paulo, cada capítulo era
como se o chão fosse cedendo,
abrindo um buraco cada vez
mais fundo em nossas vidas.
Uma manhã, seis e pouco da
matina, sonhei que meu pai havia telefonado pedindo para juntar um dinheiro para quitar uma
dívida urgente. Acordei sobressaltado pelo telefone tocando na sala
da casa dos meus avós, onde dormia. Atendi, era meu pai fazendo
o apelo que eu pressentira em sonho. Os tios se cotizaram e mandaram o dinheiro para o cunhado, em retribuição pelo muito que
fizera por todos.
Sofria, menos pelo que eu passava, mais pelo que supunha que
as meninas estivessem passando.
Achava que as marcas daquele
período ficariam indelevelmente
em nossas vidas.
Levou muito tempo para entender a lógica do processo e perceber
a dosagem de sofrimento inútil
pelo qual passara.
Esses períodos parecem não ter
fim, a cada notícia ruim sucede
outra. Vai se acostumando tanto
com as notícias ruins que, pouco a
pouco, o quadro começa a mudar, pinta uma boa nova aqui,
outra acolá, depois mais e mais
notícias boas, mas se demora para perceber a mudança. A volta
do equilíbrio, a consolidação da
paz vai se dando aos pingos e, desacostumados com o novo quadro, fica-se à espera de uma nova
notícia que recoloque o pesadelo
no lugar do sonho.
Até que se acorda em uma manhã e se vê o céu azul, ou que provavelmente estava azul já há algum tempo, mas sem que a gente
se desse conta.
E aí se constata que, em vez de
desagregar a família e deixar seqüelas, aqueles anos de privação,
de incerteza, de insegurança em
relação ao futuro, produziram
fortalecimento, uma têmpera que
ajudou a todos a percorrer com
firmeza todas as dificuldades futuras. O sentimento de família se
consolidou, o caráter completou,
assim como o hábito de não dar
importância ao supérfluo, mesmo
depois que a vida se ajeitou.
Só no final do processo se percebe a lógica e se tiram as lições. E se
constata que, nesses tempos de
globalização e de falta de princípios, nesses tempos de Nizan
Guanaes e do pobre do Zeca Pagodinho, da perda de identidade
nacional e de princípios éticos básicos, a grande âncora continua
sendo uma instituição milenar, a
família, velha de guerra. Que
Deus guarde nossos pais e proteja
para sempre nossas crianças.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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