São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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LUÍS NASSIF

O mal que um dia acaba

Meus dois melhores amigos estão desempregados. À minha volta, por onde olho, vejo o desemprego. Com ele, o desalento, a sensação de fracasso, especialmente de pais obrigados a diminuir o padrão de vida dos filhos.
Outro dia conversei com um pai que precisou tirar os filhos de um colégio particular para colocá-los em uma escola pública. No meu tempo, significava perda de status. Hoje em dia, é perda de formação.
É estranho o processo de desemprego na classe média. Ao contrário das classes mais pobres, não se passa o supremo martírio da fome, da falta de teto. Sempre há um bico para se virar, um parente a quem recorrer.
Com as classes populares, o jogo é outro. Outro dia, no prêmio Ayrton Senna, concorreu uma foto de Pernambuco, de um despejo comandado pela Polícia Militar. No primeiro plano, uniformes e cassetetes emoldurando a cena principal, de um negro, alto, forte, olhos fechados, crispados pela impotência, carregando uma filha no colo, com a mão direita, a esquerda abraçando outra filha, que chorava desesperada. O educador Rubem Alves reparou no detalhe significativo, de que o braço do pai abrigava a menina, e a mão, calejada, tocava delicadamente seu braço.
Com a classe média o drama é diverso, mas o sentimento de impotência é similar.
Quando meu pai deu início à venda de seus bens, toda semana ia à casa da minha tia Zélia para jantar e ouvir as últimas notícias de Poços. Só havia más notícias. A venda da chácara, da casa do tio Léo, do carro, da casa nossa, depois da farmácia. Nesse meio tempo, as irmãs mais novas tendo que sair do Colégio São Domingos, de classe média, para uma escola pública de São Paulo. Depois, um período morando com nossos avós.
A notícia das meninas sendo tiradas da classe do colégio por falta de pagamento, depois a vinda para São Paulo, cada capítulo era como se o chão fosse cedendo, abrindo um buraco cada vez mais fundo em nossas vidas.
Uma manhã, seis e pouco da matina, sonhei que meu pai havia telefonado pedindo para juntar um dinheiro para quitar uma dívida urgente. Acordei sobressaltado pelo telefone tocando na sala da casa dos meus avós, onde dormia. Atendi, era meu pai fazendo o apelo que eu pressentira em sonho. Os tios se cotizaram e mandaram o dinheiro para o cunhado, em retribuição pelo muito que fizera por todos.
Sofria, menos pelo que eu passava, mais pelo que supunha que as meninas estivessem passando. Achava que as marcas daquele período ficariam indelevelmente em nossas vidas.
Levou muito tempo para entender a lógica do processo e perceber a dosagem de sofrimento inútil pelo qual passara.
Esses períodos parecem não ter fim, a cada notícia ruim sucede outra. Vai se acostumando tanto com as notícias ruins que, pouco a pouco, o quadro começa a mudar, pinta uma boa nova aqui, outra acolá, depois mais e mais notícias boas, mas se demora para perceber a mudança. A volta do equilíbrio, a consolidação da paz vai se dando aos pingos e, desacostumados com o novo quadro, fica-se à espera de uma nova notícia que recoloque o pesadelo no lugar do sonho.
Até que se acorda em uma manhã e se vê o céu azul, ou que provavelmente estava azul já há algum tempo, mas sem que a gente se desse conta.
E aí se constata que, em vez de desagregar a família e deixar seqüelas, aqueles anos de privação, de incerteza, de insegurança em relação ao futuro, produziram fortalecimento, uma têmpera que ajudou a todos a percorrer com firmeza todas as dificuldades futuras. O sentimento de família se consolidou, o caráter completou, assim como o hábito de não dar importância ao supérfluo, mesmo depois que a vida se ajeitou.
Só no final do processo se percebe a lógica e se tiram as lições. E se constata que, nesses tempos de globalização e de falta de princípios, nesses tempos de Nizan Guanaes e do pobre do Zeca Pagodinho, da perda de identidade nacional e de princípios éticos básicos, a grande âncora continua sendo uma instituição milenar, a família, velha de guerra. Que Deus guarde nossos pais e proteja para sempre nossas crianças.

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br


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