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São Paulo, quarta-feira, 21 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Autonomia, caixa-preta e regulação do sistema financeiro

ROLAND VERAS SALDANHA JR.

Um sistema financeiro que "funciona bem" e em que não há abusos de poder de mercado: um ideal que rapidamente se distancia. A eventual aprovação do projeto de lei complementar nº 344/2002, ora em trâmite no Congresso e já emendado, para pior, faz antecipar sérias dúvidas sobre a possibilidade de um mercado financeiro concorrencialmente saudável no país.
Apresentado pela imprensa como um importante e positivo aperfeiçoamento (Folha, 13 de abril de 2003, "Fusão de bancos deverá passar pelo Cade"), o referido projeto consiste em uma alteração na Lei do Sistema Financeiro (4.595/64), que pretende superar a equivocada opinião de que o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não tenha hoje competência para julgar a legalidade de atos de concentração no Sistema Financeiro Nacional.
De certa forma reconhecendo que os mal-entendidos eram menores do que se supunha, com o projeto 344/2002 passa a competir privativamente ao Banco Central a decisão "acerca dos atos de concentração entre instituições financeiras que afetem o bom funcionamento do sistema financeiro". Prevê o projeto, ainda, que, na hipótese de estar resguardado o "bom funcionamento" do sistema financeiro, a autarquia responsável pela política monetária "encaminhará, de imediato, a matéria às autoridades responsáveis pela defesa da concorrência".
O que significa "bom funcionamento" do sistema financeiro? Se os dois primeiros bancos do país em volume de depósitos à vista resolverem se fundir, o "bom funcionamento" do sistema será afetado? E se o Cade entender que a operação seja ilícita sob a perspectiva concorrencial, ordenando sua desconstituição, permanecerá intacto o "bom funcionamento" do sistema financeiro? É evidente que temos, respectivamente, uma resposta positiva e outra negativa, razão pela qual dificilmente os experientes técnicos do Banco Central correrão o risco de submeter operações importantes ao escrutínio das autoridades concorrenciais.
Tudo estaria bem se fosse factível entender que o próprio Banco Central faria valer a legislação concorrencial pertinente, conforme posta na lei 8.884/94. Infelizmente, no dito projeto de lei não há indicação de critérios específicos, como os estabelecidos na Lei de Defesa da Concorrência, para que o Banco Central exerça sua suposta (ou novel) competência privativa em matéria concorrencial. Na improvável hipótese de que o fizesse informalmente, mas com o devido rigor, a posterior avaliação pelo Cade representaria mero dispêndio desnecessário de recursos públicos.
Alternativamente, se o Banco Central, diante de operação que afete o "bom funcionamento" do SFN, optasse pela autorização desconsiderando seus impactos concorrenciais, com o projeto se teria atribuído a esta autarquia o poder de escolher entre as tiras da Constituição Federal que deseja respeitar.
Não se inclui nesta análise nenhuma suspeição a respeito da equipe técnica do Banco Central, que merece elogios pela excelência profissional. Há clareza, entretanto, de que a concentração dessas prerrogativas no ente público ao qual se imagina garantir autonomia de fato no futuro é, no mínimo, perigosa. Um Banco Central autônomo, livre para zelar pelo valor da moeda nacional e protegido de interesses político-conjunturais, não deveria sequer ser responsável pela regulação técnica do sistema financeiro, muito menos pela análise da questão concorrencial subjacente.
Como está, o projeto de lei complementar desloca para a caixa-preta do Banco Central mais poder do que é necessário para que cumpra suas funções precípuas. A propósito, zelar pela concorrência nos mercados financeiros não é, conforme a lei vigente e a boa lógica econômica, função do Banco Central. Até porque, ao se atribuir competência decisória a determinado ente administrativo, objetiva-se, em primeiro, a imparcialidade no julgamento. Ora, como indica o próprio projeto de lei, pode ser do interesse do BC, no atendimento de suas funções técnicas e específicas, autorizar determinada concentração, o que, caso a caso, possivelmente colide com as boas recomendações da análise concorrencial.
De maneira oposta à encontrada no projeto 344/2002, uma solução que contemplasse a cooperação entre as autarquias ou o atendimento simultâneo e imparcialmente ponderado dos riscos financeiros e concorrenciais seria desejável. Dá-se a competência para quem não tem o interesse, tira-se a competência de quem só tem esse interesse. Que projeto é esse?
O caráter de urgência na votação dessa matéria tão imperfeitamente burilada faz ressurgir alguns medos. De fato, nos horizontes estão aperfeiçoamentos regulatórios nas agências setoriais e a própria regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal. "Quo vadis" Brasil?


Roland Veras Saldanha Jr., mestre em economia de empresas (FGV), é mestrando em direito (PUC-SP) e consultor em Law & Economics.

E-mail -
rsaldanha@actiomercatoria.com.br

Hoje, excepcionalmente, a coluna de Antonio Barros de Castro não é publicada.


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