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OPINIÃO ECONÔMICA
Autonomia, caixa-preta e regulação do sistema financeiro
ROLAND VERAS SALDANHA JR.
Um sistema financeiro que
"funciona bem" e em que
não há abusos de poder de mercado: um ideal que rapidamente se
distancia. A eventual aprovação
do projeto de lei complementar
nº 344/2002, ora em trâmite no
Congresso e já emendado, para
pior, faz antecipar sérias dúvidas
sobre a possibilidade de um mercado financeiro concorrencialmente saudável no país.
Apresentado pela imprensa como um importante e positivo
aperfeiçoamento (Folha, 13 de
abril de 2003, "Fusão de bancos
deverá passar pelo Cade"), o referido projeto consiste em uma alteração na Lei do Sistema Financeiro (4.595/64), que pretende superar a equivocada opinião de que o
Cade (Conselho Administrativo
de Defesa Econômica) não tenha
hoje competência para julgar a legalidade de atos de concentração
no Sistema Financeiro Nacional.
De certa forma reconhecendo
que os mal-entendidos eram menores do que se supunha, com o
projeto 344/2002 passa a competir
privativamente ao Banco Central
a decisão "acerca dos atos de concentração entre instituições financeiras que afetem o bom funcionamento do sistema financeiro". Prevê o projeto, ainda, que,
na hipótese de estar resguardado
o "bom funcionamento" do sistema financeiro, a autarquia responsável pela política monetária
"encaminhará, de imediato, a matéria às autoridades responsáveis
pela defesa da concorrência".
O que significa "bom funcionamento" do sistema financeiro? Se
os dois primeiros bancos do país
em volume de depósitos à vista
resolverem se fundir, o "bom funcionamento" do sistema será afetado? E se o Cade entender que a
operação seja ilícita sob a perspectiva concorrencial, ordenando
sua desconstituição, permanecerá
intacto o "bom funcionamento"
do sistema financeiro? É evidente
que temos, respectivamente, uma
resposta positiva e outra negativa,
razão pela qual dificilmente os experientes técnicos do Banco Central correrão o risco de submeter
operações importantes ao escrutínio das autoridades concorrenciais.
Tudo estaria bem se fosse factível entender que o próprio Banco
Central faria valer a legislação
concorrencial pertinente, conforme posta na lei 8.884/94. Infelizmente, no dito projeto de lei não
há indicação de critérios específicos, como os estabelecidos na Lei
de Defesa da Concorrência, para
que o Banco Central exerça sua
suposta (ou novel) competência
privativa em matéria concorrencial. Na improvável hipótese de
que o fizesse informalmente, mas
com o devido rigor, a posterior
avaliação pelo Cade representaria
mero dispêndio desnecessário de
recursos públicos.
Alternativamente, se o Banco
Central, diante de operação que
afete o "bom funcionamento" do
SFN, optasse pela autorização
desconsiderando seus impactos
concorrenciais, com o projeto se
teria atribuído a esta autarquia o
poder de escolher entre as tiras da
Constituição Federal que deseja
respeitar.
Não se inclui nesta análise nenhuma suspeição a respeito da
equipe técnica do Banco Central,
que merece elogios pela excelência profissional. Há clareza, entretanto, de que a concentração dessas prerrogativas no ente público
ao qual se imagina garantir autonomia de fato no futuro é, no mínimo, perigosa. Um Banco Central autônomo, livre para zelar pelo valor da moeda nacional e protegido de interesses político-conjunturais, não deveria sequer ser
responsável pela regulação técnica do sistema financeiro, muito
menos pela análise da questão
concorrencial subjacente.
Como está, o projeto de lei complementar desloca para a caixa-preta do Banco Central mais poder do que é necessário para que
cumpra suas funções precípuas. A
propósito, zelar pela concorrência
nos mercados financeiros não é,
conforme a lei vigente e a boa lógica econômica, função do Banco
Central. Até porque, ao se atribuir
competência decisória a determinado ente administrativo, objetiva-se, em primeiro, a imparcialidade no julgamento. Ora, como
indica o próprio projeto de lei, pode ser do interesse do BC, no atendimento de suas funções técnicas
e específicas, autorizar determinada concentração, o que, caso a
caso, possivelmente colide com as
boas recomendações da análise
concorrencial.
De maneira oposta à encontrada no projeto 344/2002, uma solução que contemplasse a cooperação entre as autarquias ou o atendimento simultâneo e imparcialmente ponderado dos riscos financeiros e concorrenciais seria
desejável. Dá-se a competência
para quem não tem o interesse, tira-se a competência de quem só
tem esse interesse. Que projeto é
esse?
O caráter de urgência na votação dessa matéria tão imperfeitamente burilada faz ressurgir alguns medos. De fato, nos horizontes estão aperfeiçoamentos regulatórios nas agências setoriais e
a própria regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal.
"Quo vadis" Brasil?
Roland Veras Saldanha Jr., mestre em
economia de empresas (FGV), é mestrando em direito (PUC-SP) e consultor em
Law & Economics.
E-mail -
rsaldanha@actiomercatoria.com.br
Hoje, excepcionalmente, a coluna de Antonio Barros de Castro não é publicada.
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