São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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VINICIUS TORRES FREIRE

Tiros no Natal de 1929


"Folha da Manhã" tinha raras notícias da crise, mas tratava de "reformas", enchentes em São Paulo e de muitos tiros


NA VÉSPERA do Natal de 1929, notícias de crise eram raras na "Folha da Manhã". "Lampeão" disputava o alto da primeira página com um editorial de apoio à candidatura de Julio Prestes à Presidência. Logo abaixo, o "assumpto" era a crise argentina. O jornal dava a impressão de que mais iminente era a crise política, que explodiria na Revolução de 30. "Cada chuva que cae transforma-se numa acusação contra a Prefeitura" de São Paulo, dizia a página 5. As bocas de lobo estavam, "hontem, como sempre, entupidas". O aguaceiro descera a Consolação. "Um Ford, e dos novos", "encalhou". "No largo do Piques [entre a ladeira da Memória e a praça da Bandeira atuais] podia-se disputar uma partida de polo aquático".
A Argentina enfrentava uma fuga de capitais e mudava o regime cambial, para variar. Fechava sua "caixa de conversão" devido à "excessiva emigração do ouro", embora "essa sahida" não se devesse a "nenhum balanço desfavoravel ao paiz", "mas à especulação de certos bancos particulares". Isto é, a Argentina estabelecia controle de capitais devido a um ataque especulativo, pois os fundamentos econômicos eram sólidos, como diz o clichê de hoje.
O editorial a favor de Prestes elogiava um programa que parece quase de ontem: moeda estável, criação de um Banco Central, "reformas". "Saneada a nossa moeda e reajustada a vida ao seu valor, o Brasil entrará, desassombradamente, no largo caminho que conduz à tranqüilidade". Como? Com o "ouro verde": "A plataforma aconselha rumo ao campo", onde o "paiz pode produzir de tudo".
Mas o jornal reclamava que, na Primeira Guerra, "nos cosemos com a linha de casa, patenteando à Europa, attonita, a nossa grande vitalidade"; em 1929, voltáramos a importar de tudo, devido em parte à "ausencia de organizações capazes de incentivar fontes de produção" e pela falta de estradas. Alguma política industrial seria, pois, desejável (aliás, com auxílio do Banco Central), assim como melhorias no café ("na rubiácea sempre repousará a nossa prosperidade"). No dia 25 tentaram matar a tiros o presidente argentino. No dia 26, o deputado Simões Lopes matou a tiros seu colega Souza Filho, dentro da Câmara Federal. Na refrega, o filho de Lopes quebrou uma bengala na cabeça de Souza, que então tentou esfaquear o rapaz. A seguir, levou dois tiros de Lopes, na primeira fila da bancada. Lopes se entregou. Ao sair preso da Câmara, ouvia "populares a gritar "lyncha'".
No mesmo dia, a "escriptora" Sylvia Thibal, 27, vingava-se da notícia sobre seu desquite, que o jornal carioca "A Crítica" dera na primeira página: foi à redação, de chapéu, vestido de seda preto, e acertou um tiro no coração de Roberto Rodrigues, jornalista e caricaturista que a ela prometera que nada seria publicado. Sylvia se separava amigavelmente do marido, que repudiava a carreira literária da mulher. É um alívio que mesmo as críticas mais duras e merecidas dos leitores sejam hoje mais benévolas do que as de antanho. Espero motivar menos tiros metafóricos em 2009, mas volto a escrever ainda neste ano, no próximo domingo, depois de uma folga de Natal. Boas festas.

vinit@uol.com.br


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