São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

O que fazer?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Outro dia, vinha andando distraído pela rua da Consolação quando, de repente, um sujeito atravessa meu caminho e pergunta, sorridente: "O senhor não é o dr. Laranjeira, que fala sobre drogas na televisão?".
Lamentável. Neguei, um pouco irritado, e segui em frente. De repente, baixa-lhe uma luz: "Ah, o senhor é economista, não é?". Confirmei e apressei o passo. Enquanto me afastava, ainda escutei: "Muito melhor ser economista, muito melhor!".
Depois, fiquei pensando: por que a irritação? Afinal, economista também fala sobre drogas na televisão. A política econômica brasileira deve ter feito mais vítimas do que o tráfico de entorpecentes.
Mas, enfim, no artigo da semana passada prometi que hoje discutiria soluções. A crise cambial de 2002 torna evidente a necessidade de uma reorientação profunda da economia. Em que consistiria essa reorientação?
Trata-se, é claro, de questão complexa, que precisa ser avaliada com cuidado. Permita-me, leitor, remeter a um texto que publicarei no próximo número da revista "Estudos Avançados", do Instituto de Estudos Avançados da USP. Esse texto tem a pretensão de apresentar os elementos principais de uma estratégia de superação do quadro de dependência externa e de crescimento medíocre, criado pelo modelo econômico adotado pelo Brasil desde o início dos anos 90. Posso enviá-lo, sem custo, aos interessados no tema. O que segue é, em certa medida, um resumo da parte normativa do texto.
A diminuição da vulnerabilidade externa requer, primeiramente, um esforço sistemático, sustentado ao longo de vários anos, de redução do déficit do balanço de pagamentos em conta corrente. O desafio é alcançar essa redução com a economia crescendo a taxas significativas. Como o crescimento da economia leva a uma maior demanda por importações e diminui os excedentes exportáveis, o desafio é maior do que às vezes se pensa. Só será possível vencê-lo com a mobilização de um conjunto variado de instrumentos de estímulo à exportação e à substituição de importações de bens e serviços (política cambial, política de comércio exterior, política de crédito, política tributária, entre outros), que são objeto de discussão no texto mencionado.
Porém a diminuição do déficit em conta corrente não é suficiente. Precisamos, também, implantar um sistema bem pensado e criterioso de regulação do endividamento externo e dos movimentos de capital na economia brasileira. É recomendável, além disso, acumular reservas internacionais próprias (em oposição às reservas emprestadas pelo FMI), que constituem a primeira linha de defesa em conjunturas adversas.
Com a conta de capitais aberta e as reservas relativamente baixas, o Brasil continuará experimentando turbulências financeiras e cambiais, que abalam a estabilidade da economia e sufocam seu crescimento. Fala-se muito na relação dívida pública-PIB. Um indicador mais relevante talvez seja a relação dívida-reservas. Mesmo com a depreciação cambial ocorrida, a dívida mobiliária federal, que é uma espécie de quase-moeda, representava, ao final de junho último, o equivalente a nada menos do que 8,4 vezes o valor das reservas internacionais líquidas do país. Basta que uma parcela relativamente pequena dessa dívida se converta em demanda por moeda estrangeira para que apareça forte pressão sobre a taxa de câmbio e/ ou as reservas.
O que significa regular os movimentos de capital? Há várias modalidades de controle. Um exemplo: o Banco Central negligenciou a administração do perfil de vencimentos da dívida externa do setor privado. Resultado: em um ano difícil como 2002, marcado pela retração da oferta de crédito externo, acumulam-se amortizações de dívidas privadas que as empresas não conseguem ou têm grande dificuldade de refinanciar voluntariamente, contribuindo para a depreciação extraordinária do real. Convém restabelecer e aplicar com rigor uma política de prazos mínimos de endividamento externo, evitando a concentração de vencimentos e alongando gradualmente o prazo médio das obrigações. Isso, evidentemente, na medida em que as condições de mercado permitirem e a diminuição do déficit em conta corrente for reforçando o nosso poder de barganha.
Outro exemplo: uma minoria privilegiada de brasileiros passou a ter a possibilidade de remeter capital para o exterior com excessiva liberdade. Resultado: em momentos de nervosismo e incerteza, como o atual, aumenta rapidamente a fuga de capitais para o exterior, reforçando a pressão sobre a taxa de câmbio.
É verdade que o regime de câmbio flutuante pode ajudar a corrigir esse tipo de problema. A depreciação cambial resultante da fuga de capitais encarece as compras de moeda estrangeira, desencorajando novas saídas de capital.
No entanto, no caso de uma economia em desenvolvimento, sujeita a surtos de instabilidade, não é um pouco ingênuo apostar nas propriedades autocorretivas da flutuação cambial? Em momentos de pânico, a depreciação se auto-alimenta, desestabiliza empresas endividadas no exterior, atinge gravemente as finanças públicas (dado que grande parte da dívida governamental é externa ou indexada à taxa cambial) e dificulta o controle da inflação.
Mais prudente seria rever em detalhes toda a legislação e os mecanismos de controle sobre os movimentos de capital e redobrar a supervisão sobre as operações externas das instituições financeiras brasileiras e das estrangeiras que operam no Brasil. Em contrapartida, o Estado brasileiro deve continuar dando total garantia e segurança jurídica às aplicações financeiras no território nacional.
Tudo isso teria um objetivo central, a ser perseguido obsessivamente ao longo dos próximos anos: recuperar a nossa capacidade de atuar de forma independente. Como economia satélite, cronicamente dependente de capital estrangeiro e submetida a crises recorrentes de liquidez externa, o Brasil não tem futuro.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV- SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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