São Paulo, quarta-feira, 22 de setembro de 2004

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PIRATARIA

Diplomata critica proposta do país de relativizar direito de propriedade intelectual e minimiza saldo comercial brasileiro

EUA acusam o Brasil de "mistificação"

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O governo norte-americano fulminou ontem com dureza a mais recente proposta brasileira para a legislação relativa aos direitos de propriedade intelectual.
"É uma mistificação", disparou Peter Allgeier, embaixador que é o subchefe do USTr (United States Trade Representative, uma espécie de ministério norte-americano de comércio exterior).
A frase exata foi "I am mistifyed", que não tem tradução literal mas que representantes da Câmara Americana de Comércio, onde ela foi pronunciada, concordaram em que "é uma mistificação" corresponderia precisamente ao espírito da afirmação.
A proposta desqualificada por Allgeier foi apresentada há duas semanas pelo Brasil, em companhia de Argentina e Bolívia, no âmbito da Ompi (Organização Mundial de Propriedade Intelectual). Seu espírito é o de exigir que a Ompi leve em conta em suas regulamentações uma "agenda do desenvolvimento".
Diz o texto que o respeito aos direitos de propriedade intelectual "não pode ser visto como um fim em si mesmo" e que a harmonização das leis de propriedade intelectual, que levaria a um padrão mais elevado de proteção em todos os países, não pode deixar de levar em conta os diferentes níveis de desenvolvimento.

Instrumento político
"A proteção à propriedade intelectual é um instrumento político cuja operação pode, de acordo com a prática, produzir benefícios assim como custos, que podem variar de acordo com o nível de desenvolvimento de um país", completa a proposta dos países sul-americanos.
Allgeier rebateu o argumento, ao responder pergunta da Folha, após o almoço a ele oferecido ontem pela Câmara Americana de Comércio: "Não entendemos como o relaxamento dos direitos de propriedade intelectual possa ser coerente com o desenvolvimento", disse o diplomata.
Terminou a resposta com o comentário sobre a "mistificação", que se torna ainda mais agudo quando se sabe que, imediatamente após o almoço, o funcionário norte-americano viajou para Brasília, para se reunir com autoridades brasileiras justamente para discutir a propriedade intelectual.
Leva o seguinte recado, antecipado no almoço de ontem: "Para que o Brasil mantenha o acesso preferencial ao mercado norte-americano pelo nosso programa de SGP [Sistema Geral de Preferências], sem falar de uma abertura mais ampla e permanente no âmbito da Alca, precisamos garantir a aplicação dos direitos de propriedade intelectual".
Traduzindo: ou o Brasil convence as autoridades norte-americanas de que é capaz de impor respeito aos direitos de propriedade intelectual ou os Estados Unidos eliminarão o privilégio concedido ao país de exportar cerca de US$ 2,5 bilhões por ano sem pagar tarifas alfandegárias, nos termos do SGP.
É verdade que Allgeier fez questão de dizer que "não é do interesse" dos Estados Unidos "punir o Brasil", mas lembrou que o próprio SGP impõe condicionalidades, entre elas a de verificar se o país beneficiário cumpre certas regras (no caso o respeito à propriedade intelectual).
Pior: o funcionário do USTr colocou a pirataria no Brasil no mesmo nível de China e de Rússia, dois países cuja imagem é a de violação maciça dos direitos de propriedade intelectual.
O prazo para que o Brasil perca ou mantenha os benefícios do SGP vai até o fim do mês.
Mas a proposta brasileira sobre propriedade intelectual no âmbito da Ompi abre uma nova frente de batalha com os EUA, tal como a Folha antecipara na semana retrasada -e que a frase de Allgeier ontem confirma com contundência. Não foi, no entanto, o único comentário do americano que tende a provocar mal-estar no governo brasileiro.

Saldo comercial
Allgeier alvejou até a menina-dos-olhos do governo Lula, o enorme saldo comercial, por sua vez responsável por um superávit no conjunto das contas externas.
"O crescimento desproporcional das exportações brasileiras deve-se a um único país, a China, e consiste de um conjunto relativamente pequeno de commodities e matérias-primas."
O subchefe do USTr também advertiu o governo brasileiro para não comemorar tanto as vitórias nos contenciosos comerciais, como as recentemente obtidas contra os próprios EUA (caso do algodão) e contra a União Européia (açúcar): "Sei que o Brasil ficou muito satisfeito com as últimas decisões da Organização Mundial do Comércio, mas (...) existe o perigo de que a ênfase exagerada no litígio, em detrimento da negociação, nos impeça de chegar a um resultado satisfatório".
Como se fosse pouco, Allgeier cobrou que, nas estancadas negociações da Alca, sejam oferecidas pelo Brasil as mesmas vantagens que o Mercosul está propondo aos europeus, nas áreas de serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual. "Não é fácil entender porque propostas feitas à União Européia não se repetem na Alca", queixou-se.


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