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CÉSAR BENJAMIN
Além da moeda
Os EUA acostumaram-se a
viver acima dos seus próprios
recursos, o que gera passivo
crescente e exigirá moratória
DURANTE milênios, as sociedades humanas não conheceram o que hoje chamamos
economia, pois as formas de produzir, trocar e adquirir não tinham autonomia. Existiam embutidas em
uma ampla rede de instituições e
compromissos, sociais e políticos,
que lhes conferiam sentido e lhes
impunham limites. Mesmo onde havia comércio e dinheiro, eles não estavam articulados de um modo completo e coerente. O estabelecimento
da economia como um sistema separado, situado acima dos demais, em
posição de comando, foi parte de um
processo histórico específico, violentíssimo, que na origem ocorreu em
certas partes da Europa e exigiu pesada intervenção estatal.
Numa sociedade que "liberta" a
economia e se organiza em torno da
troca de mercadorias, a moeda ocupa o lugar central. Pois, sendo o equivalente geral, sua posse é mais desejável do que a posse de uma mercadoria específica. Ao assumir essa posição, a própria moeda se transforma. Durante milênios, ela possuía
valor por ser fabricada com metais
preciosos ou porque os representava, podendo, em tese, ser trocada por
eles. Uma "relíquia bárbara", nas palavras de Keynes.
A moeda fiduciária, emitida por
um banco central, é um fenômeno
extremamente recente. Ela não se
refere a nada que não seja o poder do
Estado, o qual, ao emiti-la, compromete-se apenas a aceitá-la na quitação de tributos, nada mais, definindo
assim o espaço econômico em que
exerce a sua própria soberania. Essa
evolução só se completou a partir da
década de 1970, quando os Estados
Unidos anunciaram a inconversibilidade do dólar, rompendo os acordos
de Bretton Woods e declarando,
contra o mundo, a moratória de suas
reservas de ouro. Foi uma ousada solução para os problemas americanos
de então. Lançou as bases para a retomada, ou a reafirmação, da hegemonia desse país, na época ameaçada economicamente pelo Japão e pela Alemanha, militarmente pela
União Soviética e politicamente pela
vaga contestadora que vinha do Terceiro Mundo. O padrão dólar flexível
quebrou o ímpeto de todos os concorrentes, reais ou potenciais, inclusive o Brasil.
Permanece em aberto, porém, a
questão de saber se pode ser estável
uma ordem econômica internacional que gira em torno de uma moeda
fiduciária emitida por um Estado nacional. Creio que não. Ela contém
uma contradição insanável, pois o
espaço de soberania de um único Estado passa a ser todo o planeta. O
preço disso são enormes tensões e
instabilidades que se acumulam.
Na relação com o mundo, os EUA
acostumaram-se a viver muito acima dos seus próprios recursos, o que
gera um passivo crescente e exigirá
nova moratória futura. Internamente, o novo arranjo tornou amplamente hegemônicos os administradores de ativos líquidos, que nem sequer manejam moeda. Manejam títulos, participações, cotas, ações, derivativos, papéis de todo tipo, inclusive papéis que representam outros
grupos de papéis e que só existem na
fantasia dos mercados futuros... Não
estão sob controle de bancos centrais, chamados só na hora de pagar
as contas.
Nos Estados Unidos, essa incrível
pirâmide de operações financeiras
baseava-se, principalmente, em hipotecas residenciais. Agora, está solta no ar. É por isso que os analistas
mais argutos e mais bem pagos, manejando equações cada vez mais
complicadas, só conseguem dizer
platitudes. Se quisermos encontrar
a saída, o desafio é buscar novas maneiras de trazer de volta a economia
para dentro das instituições sociais,
para religá-la ao mundo-da-vida.
Ainda não sabemos como fazê-lo.
CÉSAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e
doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Passa a escrever quinzenalmente, aos sábados,
nesta coluna.
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