São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2004

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LUÍS NASSIF

O último vôo da garça

Tentou-se montar uma política de financiamento à pesquisa, o superávit primário não deixou. Quando se tentou revitalizar a marinha mercante, o superávit primário impediu. O dinheiro das estradas o superávit primário consumiu. O crédito interno o superávit primário absorveu. As despesas com saúde o superávit primário comeu.
Quando se pensa em qualquer política pró-ativa, Lula se vira para o interlocutor e resmunga: "Mexe com o superávit primário?". Se mexer, não sai.
Nas últimas semanas, procurei fazer um pequeno inventário dos avanços que o país real conquistou nos últimos anos, apesar do pensamento cabeça de planilha. Transformar o potencial em real demanda romper com o nó górdio da dívida.
Conforme descrevi na semana passada, há um ponto em comum entre a estagnação da Monarquia, a falta de rumo da Velha República e o rentismo da Nova República (entendido o período que se prolonga da redemocratização até o final do governo Lula). Trata-se do monopólio do crédito.
Cria-se o ambiente propício para que grupos internos se associem à banca internacional, captem a taxas baratas para aplicar, internamente, a taxas caras. Não se trata do movimento virtuoso de aplicar em atividades produtivas, mas de meramente arbitrar taxas.
O monopólio do crédito é transferido para a banca internacional. Ganha quem tem acesso ao crédito externo; paga a conta quem fica restrito à moeda interna, pelas taxas de juros pagas, pelos impostos cobrados e pelas despesas públicas cortadas. A transferência da riqueza se dá por meio desse mecanismo perverso de internacionalizar as aplicações na dívida pública e rolá-la a taxas exorbitantes.
Pais desse modelo, os cabeças de planilha são tão antigos quanto o diabo. Aliados dos escravagistas, flanaram pela monarquia impedindo o Barão de Mauá de espalhar crédito barato pelo país. Depois transformaram os cafeicultores em rentistas, ensinando Campos Salles a destruir as políticas públicas para preservar os créditos em libra. Quebraram o país do Cruzado, quebraram o país do Real. Mas cumpriram sua missão de enriquecer os rentistas e desmoralizar princípios de trabalho, produção, projeto de país e solidariedade nacional.
A vantagem é que esses processos não têm como se perpetuar. Encerram-se em si próprios, quando a dívida pública assume uma dinâmica própria e se torna não-financiável. Aí se dá a ruptura, que pode ser por meio de três caminhos: crise social e política, superinflação ou tentativa de saída organizada da armadilha da dívida.
Para a última alternativa, há as seguintes etapas:
1) tomada de consciência sobre o esgotamento do modelo rentista;
2) montagem de um projeto alternativo que permita unir o país em torno das novas idéias;
3) articulação de um pacto político capaz de dar sustentabilidade ao novo modelo;
4) montagem da engenharia financeira capaz de refinanciar a dívida sem comprometer o desenvolvimento;
5) coragem política para o tiro de largada.
No momento, o governo Lula e o país estão começando a sair da primeira etapa. Sobre as demais, falamos outro dia.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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