São Paulo, sexta-feira, 23 de agosto de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Finanças públicas estaduais

FELIPE OHANA

A conscientização nacional sobre a importância da austeridade fiscal foi lenta e, por isso, custou-nos caro, tanto por fomentar a inflação como por minar a confiança na economia brasileira. Resultados disso são o baixo crescimento econômico, maior desemprego e mais pobreza. Esse reconhecimento deu origem à emenda constitucional nº 19/98 e à Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar nº 101/ 2000).
O novo espírito de austeridade, contudo, não elidiu a cultura da vinculação de receitas, que retira graus de liberdade da administração das finanças públicas, ao implicar despesas obrigatórias. Em um Estado típico, para cada R$ 100 de receita, R$ 25 são transferidos aos municípios, R$ 18,75 são gastos obrigatoriamente com educação, R$ 9 obrigatoriamente com saúde, cerca de R$ 15,75 com aposentados e, para quase todos, R$ 9,75 com o serviço da dívida. Ao final, dos R$ 100, somente R$ 21,75 ficam com os governos estaduais para a execução da política.
Ao lado do reduzido poder de manobra das finanças estaduais, a LRF diz que, para os Estados que tenham caído em pecado fiscal, o excesso de gasto com pessoal deve ser corrigido em oito meses e o de dívida, em nove meses. Entre as penas encontram-se a proibição de novos empréstimos e a suspensão de transferências voluntárias. Ou seja, uma vez em pecado, as chances de continuar pecador aumentam muito. Para não haver dúvida a respeito da severidade do legislador, o artigo 35 da LRF proíbe qualquer renegociação de contratos de dívida.
Uma das críticas mais contundentes que se faz ao FMI, no âmbito internacional, é que, antes de salvar um país que se afoga, exige que ele mergulhe mais dez metros. Não raro, com água nos pulmões, não vem à tona. O FMI tem suavizado sua abordagem; o mesmo cabe às regras brasileiras que regem os procedimentos de reequilíbrio fiscal.
Naturalmente, ao princípio da austeridade não cabe crítica. Contudo, a solução estabelecida, para os desvios, não se mostra temporalmente consistente, a não ser para montantes muito reduzidos. Estão envolvidas questões que vão desde a prestação de serviços públicos, cuja administração no curto prazo não é trivial (como as de polícia, Justiça, saneamento etc.), até processos legais relativos à estabilidade dos servidores públicos (nada obstante o parágrafo 4º do artigo 21 da EC nº 19), sem desprezar a necessidade de recursos para reestruturar e modernizar a administração pública, implementar um PDV, retreinar servidores etc.
Na prática, ao novo governo federal caberia implantar um programa de reestruturação do ajuste fiscal de alguns Estados, além de novos prazos para as penas, previstas na LRF, e de suspensão temporária das vinculações.
O programa de reestruturação pode vir a ter várias formas, mas, essencialmente, consistiria em transferir para os Estados um percentual do pagamento feito a título de serviço da dívida, condicionado a metas fiscais trimestrais, acoplado a uma engenharia financeira (taxa de juros, por exemplo) que permitisse à União recuperar, no longo prazo, as transferências feitas sob a égide do programa. Tudo isso, naturalmente, sem prejuízo do resultado fiscal agregado.
As críticas a essa iniciativa podem ser antecipadas. Primeiro, há o risco moral, ou seja, um incentivo para que os bem-comportados se tornem faltosos. Para isso, os termos do programa devem ser adequados (taxa de juros do novo contrato, comprometimento da receita, prazos e exigências fiscais). Segundo, a isonomia, vale dizer, os Estados bem-comportados irão demandar compensações. Essa é uma questão política, com fundamentos jurídicos, que deve ser trabalhada sob o princípio de que é legítimo melhorar a condição de um Estado desde que não se piore a de nenhum outro. Terceiro, a União perde receita e, portanto, seu esforço fiscal aumenta. Nesse ponto, não se pode esquecer que a capacidade de um Estado cumprir com suas obrigações depende do superávit primário que pratica. Quando o resultado primário é insuficiente, o Estado é inadimplente por definição. Isso nos remete a um paradoxo: a União perde o que não tem.
Por fim, um programa dessa natureza pode ser visto como um recuo e uma brecha para o populismo. Com essa preocupação, cabe lembrar que renegociações legítimas são feitas todos os dias, em todos os segmentos econômicos e que, portanto, é possível avaliar se essa renegociação é justificável. De fato, o que não se justifica é ignorar a inadequação das normas, simplesmente por receio de se vir a ferir princípios inquestionáveis. Uma atitude que se poderia identificar como uma "Santa Inquisição fiscal".


Felipe Ohana é economista e professor da Fundação Getúlio Vargas em Brasília.


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