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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A viagem como cura do desespero

RUBENS RICUPERO

Viajar, segundo Kierkegard, é a melhor maneira de evitar o desespero. Para o escritor alemão W.G. Sebald, no entanto, é apenas o meio de passar de um estado de desespero a outro. Assim começava uma das críticas à obra de Sebald, publicada em dezembro de 2001, o mesmo mês em que morreria, aos 57 anos, sugestivamente num acidente de automóvel, o escritor e professor que ensinara durante mais de 30 anos numa universidade de província da Inglaterra.
Depois de longo intervalo em que pensei ter-me despedido para sempre da ficção, ao menos da desconhecida, Sebald foi minha última descoberta, infelizmente coincidente com sua morte. Descobrir e explorar um novo ficcionista é como visitar pela primeira vez um país estrangeiro. Contou-me um colega haver surpreendido, numa solenidade, conversa na qual um diplomata aposentado confessava a delícia de sentir que podia agora, sem cuidados nem preocupações, "habitar no país de Balzac", ler ou reler, um após outro, os volumes da "Comédie", viver o dia-a-dia de personagens que reaparecem aqui e ali.
Eu, que aos vinte e poucos anos morei longamente em território balzaquiano, passei 40 anos de vida errante mudando constantemente de exílio diplomático e pátria literária. Já morei em Thomas Mann, em Proust, em Faulkner, em Conrad e há pouco me instalei no país de Sebald, que começo a explorar já com pena egoísta de que a morte prematura não lhe tenha deixado tempo para expandir suas fronteiras, conforme fizeram nossos bandeirantes.
Principiei por onde terminou, seu último romance, "Austerlitz", já enigmático e ambivalente no título. Seria a batalha napoleônica, a estação parisiense, o sobrenome original de Fred Astaire? Todas essas referências estão presentes no volume, cuja capa traz a foto insinuante de um menino louro fantasiado de cetim branco, capa de borla de pele, chapéu de plumas de mosqueteiro. Começa por aí, pela imagem, o choque da revelação do novo. Sebald era fotógrafo e seus livros são ilustrados por fotos quase invariavelmente de edifícios, objetos, coisas, não de gente. Fernando Pessoa diria: "Paisagem, isto é, ninguém". Sem legendas, as fotos fazem parte integral da narrativa, do mesmo modo que as frases.
"Austerlitz" abre-se com uma viagem: "Na segunda metade dos anos 60, viajei frequentemente da Inglaterra à Bélgica...". Numa dessas jornadas, o narrador anônimo encontra Jacques Austerlitz na "sala de passos perdidos", da estação de Antuérpia. No curso de encontros intermitentes, às vezes fortuitos, separados por anos, décadas, duas vozes se alternam para contar-nos uma história que continua a se desdobrar com capítulos recém-revelados ou anúncios de futuras explorações. É essa uma das originalidades de Sebald, a de um tempo sem fronteiras, em que se confundem passado e presente, ou melhor, no qual o presente vai sendo modificado pelo que se descobre do passado.
Jacques Austerlitz, professor de história da arquitetura em Londres, descobrira, quando adolescente, que tinha sido adotado por um pastor calvinista em Gales, no início da Segunda Guerra Mundial, após haver deixado Praga num dos últimos transportes de crianças judias para escapar ao Holocausto nazista. Sua vida passa a ser a luta dilacerante para recuperar a memória apagada do menino de quatro anos e meio, a busca da mãe e do pai desaparecidos, a redescoberta da língua e dos lugares esquecidos, em meio a aniquiladores ataques de amnésia.
Uma das chaves do livro é a observação de Jacques: "Será que não temos também de comparecer a encontros marcados com o passado, com o que se passou antes e está em grande parte extinto e precisamos ir até lá, em busca de lugares e pessoas que mantêm conosco uma ligação a partir do que poderíamos chamar o outro lado longínquo do tempo?".
O personagem principal é fascinado pelo estilo arquitetônico da era capitalista vitoriana, o "compulsivo senso de ordem e a tendência ao monumentalismo evidentes em palácios de Justiça e penitenciárias, estações ferroviárias e Bolsas de negócios, teatros de ópera e asilos de loucos, e as moradias populares construídas para os operários em padrões retangulares". É também obcecado pela interminável viagem ao abismo da tragédia européia do século 20, evocando, como escreveu um crítico, "ao mesmo tempo, as minúcias e a vastidão da existência individual, a inconsolável mágoa da história e a cintilante beleza do momento".
Koestler, um dos sobreviventes da tragédia, escreveu que, dentre as pessoas que conhecera antes de completar 30 anos, três em cada quatro tinham sido mortos na Guerra Civil Espanhola, ou torturados até a morte em Dachau, ou assassinados na câmara de gás em Belsen, deportados, destruídos pela miséria do exílio permanente, ou haviam saltado pela janela em Viena ou Budapeste. O próprio Koestler se suicidaria mais tarde, arrastando a mulher no pacto de morte. Outros sobreviventes que se suicidaram foram Primo Levi e Paul Celan, seguindo os passos de Joseph Roth em Paris, Walter Benjamin na fronteira espanhola, Stefan Zweig no Brasil.
Nascido em 1944 de família não-judia, Sebald não viveu a catástrofe pessoal do fim de uma civilização. Cresceu na Alemanha dos anos 50, quando a devastação moral e material da guerra era tratada como "um vergonhoso segredo de família", tabu tão forte "que não podia provavelmente ser admitido nem para si próprio". Reagindo contra o silêncio, o esquecimento, dedicou toda a obra ao resgate da memória e do passado.
Houve quem não entendesse e haverá hoje os que digam que esse horror passou para não mais voltar, os campos de extermínio, as câmaras de gás, o genocídio, a insondável vileza da monstruosidade nazista. É preciso certamente não perder o senso das proporções. Escrevendo, porém, no fim de uma semana que assistiu a atentados repetidos no Iraque, contra a sinagoga, o consulado britânico e outros alvos em Istambul, ao contínuo apodrecimento da situação no Afeganistão, entre palestinos e israelenses, ao massacre interminável de inocentes, vendo como, diante disso, a reação dos grandes é intensificar a força da repressão, é difícil discordar de Sebald quando assinala a limitadíssima capacidade humana de aprender com a experiência, exemplificada pelo fato de que "os nossos projetos mais poderosos são os que mais obviamente traem o grau de nossa insegurança".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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