UOL


São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Desregulamentação e fraudes financeiras

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O veloz desenvolvimento de inovações financeiras nos últimos anos, associado à intensa informatização dos mercados, permitiu acelerar espantosamente o volume de transações e acentuar a busca de liquidez por parte dos investidores. Essas características, combinadas com técnicas de alavancagem que envolvem o crédito bancário, explica não só a exuberância do ciclo americano dos anos 90 como também o enorme potencial de realimentação dos processos especulativos. Nesses mercados, não foram raros os momentos de colapso das expectativas, acompanhadas da sede de liquidez.
Desde a afirmação de sua supremacia, em meados dos anos 80, os mercados financeiros foram palco de uma sucessão de episódios críticos. Entre eles, estão o "crash" das Bolsas de Valores em 1987, a derrocada dos mercados imobiliários em 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em janeiro de 1990, os ataques especulativos às moedas fracas do SME em 1992 e em 1993, a crise no mercado americano de bônus em meados de 1994 e a crise mexicana de dezembro do mesmo ano. Isso para não falar na crise asiática de 1997-98, no default russo de 1998, na operação de resgate do LCTM no mesmo ano e na tragédia argentina de 2001. Os desastres só não tiveram maior alcance por conta das intervenções de última instância dos bancos centrais mais poderosos.
O economista americano Hyman Minsky procurou mostrar que a concorrência entre os possuidores de riqueza afeta as avaliações dos que buscam a maximização do ganho privado. Para ele, as decisões privadas -tomadas em condições de incerteza radical- estão sempre sujeitas à má avaliação do risco e à emergência de comportamentos coletivos de euforia que conduzem à fragilidade financeira e a crises de liquidez e de pagamentos.
Ele sublinhou a dinâmica de formação dos preços dos ativos numa economia em que a alternância entre euforia e desilusão é gerada por fortes interações subjetivas entre os participantes do mercado -capazes de provocar comportamentos coletivos como o contágio e o pânico. As condições de liquidez alteram-se endogenamente ao longo do ciclo: primeiro abundante, depois eufórica, para finalmente desaparecer diante da demanda desesperada dos que detêm ativos que geram fluxos de rendimentos inferiores aos pagamentos contratuais decorrentes da dívida acumulada.
"As decisões financeiras", diz Minsky, "são tomadas em torno de um futuro imaginado por credores e devedores como resultado de negociações em que são trocadas informações e desinformações. O resultado reflete opiniões sobre um projeto particular à luz dos sucessos e fracassos da economia no passado recente e no mais distante. A incerteza em relação ao modelo adequado para formar as expectativas pode ser maior se muitos anos se passaram desde a última crise financeira. Essa incerteza fundamental significa que as margens de segurança calculadas pelos agentes devem variar."
Na dinâmica do ciclo financeiro clássico, a concorrência entre os possuidores de riqueza associada ao crédito elástico estimula o surgimento da valorização puramente fictícia: os preços dos ativos "descolam" da evolução dos rendimentos observados, instigando, inclusive, a emissão de títulos de dívida e de ativos sem lastro nas operações da economia real.
No mundo da finança desregulamentada, os administradores da riqueza líquida -fundos de pensão, fundos mútuos, hedge funds-, no afã de carrear mais dinheiro para os seus fundos e na ânsia de bater os concorrentes, prometem mundos e fundos aos clientes. É ingenuidade, portanto, supor que esses mercados atendam aos requisitos de "eficiência", no sentido de que não podem existir estratégias "ganhadoras" acima da média, derivadas de assimetrias de informação e de poder. Os protagonistas relevantes nesses mercados são, na verdade, os grandes bancos de investimento, os fundos mútuos e as tesourarias de empresas que decidiram ampliar a participação da riqueza financeira em seu portfólio. Esses agentes poderosos sabem que os investidores de menor porte são obrigados a formular estratégias com base numa avaliação "convencionada" sobre o comportamento dos preços. Dotados de grande influência sobre a "opinião dos mercados", eles podem manter, exacerbar ou inverter tendências. Podem até mesmo inventar "novidades", manipular preços de ativos e engambelar a clientela.
No período recente, a frouxa supervisão das autoridades incumbidas de fiscalizar os mercados financeiros vem abrindo as portas para fraudes de todo gênero. Em sua última edição, a revista "The Economist", indignada com a sucessão de escândalos, pergunta: "Não há mercados financeiros honestos nos Estados Unidos?" Na seção "Buttonwood", responde: "Todos estão ganhando dinheiro, menos os clientes". "Os bancos de investimento", continua, "tratavam de se desvencilhar das ações que seus analistas "esquentavam" publicamente."


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


Texto Anterior: Opinião Econômica: A viagem como cura do desespero
Próximo Texto: Luís Nassif: Compositores sem fronteira
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.