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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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LUÍS NASSIF

Compositores sem fronteira

No CD de Maria Rita há uma penca de composições de primeiríssima linha de Marcelo Camelo. Fui saber quem era. É compositor e intérprete da banda de rock Los Hermanos. Como diria Millôr Fernandes, "enfim, um compositor sem estilo". Marcelo não é refém da MPBzisse -um estilo pseudo-sofisticado pasteurizado de tocar MPB "pura", que acabou tomando por refém toda uma geração de compositores que perderam o rumo por não saber sair da linha.
A convivência com o rock liberou Marcelo, que é dotado de uma diversidade musical que lhe permite compor sambinhas da melhor qualidade, sambas paulistas estilo Adoniran, músicas lentas, algumas obras-primas realçadas pela interpretação de Maria Rita.
Resolvi olhar para trás para entender esse processo de criação, dos compositores sem fronteira que circularam com desenvoltura da música dita sofisticada à música tida por brega.
Nenhuma dupla foi mais significativa desse estilo do que Jair Amorim e Evaldo Gouvêa. O CD "Todas as coisas", que Gal Costa acaba de lançar -certamente inspirado no excelente "Copacabana", dos Trovadores Urbanos, com arranjos vocais de primeira de Marcelo Maestro-, traz um clássico da dupla, o "Brigas" ("Veja só que tolice nós dois"...).
Jair Amorim nasceu em Leopoldina (Espírito Santo), em 1915. Mudou-se para o Rio de Janeiro e foi trabalhar como jornalista e radialista. Quando o pianista José Maria de Abreu (autor das mais belas valsas da música brasileira) perdeu seu parceiro Francisco Matoso, Jair candidatou-se à vaga. Ambos eram colegas da Rádio Clube do Brasil. Mas só conseguiu depois que compôs a letra da versão de "Maria Elena" ("Maria Elena és tu / a minha inspiração"), do mexicano Lorenzo Barcelata, gravada por Arnaldo Amaral, cantor de algum sucesso na época.
Foram parceiros durante dez anos, compondo a parte mais substanciosa do mais sofisticado cantor brasileiro da história, Dick Farney. Deles, Dick gravou "Alguém como tu", "Sonhar" e "Ponto final". Jair Amorim também colocou letra em uma das mais belas valsas para violão, o "Se ela perguntar", de Dilermando Reis, gravada por Carlos Galhardo. Também foi parceiro de Wilson Batista e Roberto Martins e fez parte da linha de frente do brilhante time de compositores que antecedeu a bossa nova.
Em meados dos anos 50 compôs um dos grandes clássicos de todos os tempos, "Conceição", em parceria com Dunga, sucesso estrondoso de Cauby Peixoto.
Foi lá para 1957 que Jair conheceu Evaldo Gouvêa, nascido em 1930, em Iguatu, Ceará. Depois de uma carreira nas rádios locais, Evaldo montou o trio Nagô, com Mário Alves e Epaminondas de Sousa. Em uma breve excursão pelo Rio, agradaram tanto que foram contratados por Vadeco (que tinha sido do Bando da Lua) para a Rádio Jornal do Brasil.
Apenas em 1957 Evaldo começara a compor, e a estréia foi "Deixe que ela se vá" (com Gilberto Ferraz), gravada por Nelson Gonçalves.
Evaldo conheceu Jair Amorim em uma visita à União Brasileira dos Compositores, da qual Amorim era diretor. No mesmo dia compuseram "Conversa", gravada por Alaíde Costa. E aí enveredaram por um estilo de música saborosíssimo, mas que certo tipo de crítica preconceituosa rotulou de brega. Para Miltinho compuseram "Poema do olhar". Para Altemar Dutra, outro campeão de vendas, os clássicos "Que queres tu de mim", "O trovador" e "Somos iguais".
Foram mais de 150 músicas em parcerias de todos os gêneros. Clássicos da marcha-rancho, como o "Bloco da solidão", sambas-enredo, como "O mundo melhor de pixinguinha", de 1973, bolerões como "Alguém me disse", tangos como "Tango para Teresa", gravado por Ângela Maria, sambas clássicos, como "O conde", gravado por Jair Rodrigues.
Jair Amorim morreu em 1993, aos 78 anos. Evaldo Gouvêa continua firme aí, na noite. Se minha vida maluca deixar, qualquer dia desses ainda armo uma boa noitada, para saber o que ele anda compondo.


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