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OPINIÃO ECONÔMICA
O mistério do ministério
AFONSO FLEURY
Os recentes episódios de grampos, frituras e intrigas que parecem ser o pano de fundo para a
criação do Ministério do Desenvolvimento (ou da Produção) revelam, mais uma vez, o descaso das
autoridades para com o problema
que pretendem equacionar: a produção.
Dizem os compêndios que produção gera emprego e renda. Mas
não é qualquer produção que soluciona problemas econômicos e sociais. Desde que o Japão emergiu
como potência econômica, nos
anos 70, os demais países desenvolvidos sabem que a produção
pode (e deve) ser utilizada de maneira estratégica: dominar e desenvolver conhecimentos nessa área
gera vantagens competitivas.
A nova economia globalizada é
baseada em "conhecimento". O
que agrega valor é a produção intelectual, o trabalho de inteligência
baseado em capital intelectual. As
montadoras de automóveis são o
exemplo mais evidente disso: hoje,
as atividades que mais lhes interessam são o marketing, as finanças
(os bancos associados às montadoras são extremamente lucrativos), o projeto do produto e a organização da cadeia produtiva. Paradoxalmente, o que menos interessa é o trabalho manual, repetitivo, de montagem, que é terceirizado.
Essa lógica também vale para os
países. Em seu livro "O Trabalho
das Nações", Robert Reich, da
Harvard University, analisa os três
tipos de trabalho nessa nova economia: o trabalho rotineiro de
produção (que não interessa aos
EUA e pode ser exportado); o trabalho rotineiro de serviços (que
também não interessa, mas não
pode ser exportado); e o trabalho
intelectual (ou, como ele denominou, "os analistas simbólicos", que
é o trabalho que interessa e deve
ser cada vez mais incentivado).
Não foi por acaso que Clinton o escolheu como ministro do Trabalho
na primeira legislatura (93-97).
Mas o que observamos no misterioso caso brasileiro? Inicialmente,
uma premissa de que as empresas
locais não são competitivas e que a
competitividade decorre de um
mercado aberto e de novos investimentos produtivos estrangeiros.
Não que as empresas brasileiras tenham sido exemplos de virtude,
mas as mais importantes já fizeram o "mea culpa" e estão procurando recuperar o tempo perdido,
apesar das condições adversas. Por
outro lado, fica evidente a presença, cada vez mais hegemônica, das
subsidiárias e a importação de
produtos e componentes de maior
tecnologia.
Cabe perguntar: o que leva uma
empresa estrangeira a investir no
Brasil e não em algum outro lugar?
A resposta inclui a estabilidade política e econômica, um grande
mercado potencial e mão-de-obra
relativamente barata. Dadas essas
vantagens competitivas, quais são
as atividades que essas empresas
trazem para o país? De maneira
consistente, são as atividades de
montagem e acabamento, de logística e distribuição. O comando, a
inteligência, as atividades que geram valor são realizadas nas matrizes ou em outros países desenvolvidos.
Para o pessoal de Brasília, isso
não é problema. Ao contrário, é sinal de sucesso, porque, afinal, há
produção no Brasil. Sim, mas de
que tipo? É uma produção que cria
poucos empregos, porque está cada vez mais automatizada; gera
baixa renda, pois se baseia no trabalho rotineiro de produção; e tem
pequena capacidade de desenvolvimento e disseminação de conhecimentos. Não há preconceitos
contra as multinacionais; há apenas o reconhecimento de que elas
entendem profundamente a lógica
da competição globalizada e agem
competentemente de acordo com
seus interesses. E, enquanto suas
operações no Brasil forem lucrativas (e como são!), não haverá motivos para que mudem a estratégia.
Mas é crucial questionar: por
quanto tempo teremos esse tipo de
produção e de geração de emprego
e renda? As empresas estrangeiras
têm plena convicção de que mercados são instáveis, especialmente
nos países emergentes. Consequentemente, seus critérios de decisão sempre avaliam os riscos de
investimentos em sistemas de produção.
Para contrabalançar esse fator,
os nossos governantes, especialmente os governadores de determinados Estados, na chamada
guerra fiscal, criaram condições
que minimizam os riscos das empresas que se instalam em seus domínios. Mas esquecem algo fundamental: as novas fábricas são móveis, voláteis. A construção é modular e os equipamentos são leves,
permitindo a translação entre regiões e países. Há inúmeros exemplos na Ásia e na América Central.
É como se fosse um circo: na hora
em que o público mingua, recolhe-se o toldo e muda-se para outro local.
Há alguma saída? Há. E o ponto
de partida é assumir que a produção é uma função inteligente e estratégica para o desenvolvimento
econômico e social. Isso implica
negociar com as empresas estrangeiras para que tenham perfil mais
carregado em atividades de inteligência, implica também a capacitação das empresas locais, a partir
de um esforço de melhoria nos recursos humanos e da infra-estrutura logística e de serviços.
Apesar da obviedade da sugestão
acima, a questão mais importante
é que a definição de uma política
nesse sentido não deve ser feita nos
gabinetes palacianos, invariavelmente sujeitos a grampos e manobras nem sempre transparentes.
Admitindo que o Estado não desfruta de uma base superior de conhecimentos ou tem maior capacitação estratégica, o encaminhamento exige o envolvimento de todos (empresas, sindicatos, universidades etc.), para gerar a criatividade, o suporte e o comprometimento necessários para implementar com sucesso as políticas
formuladas.
O Ministério de Desenvolvimento talvez ainda possa ser criado
dentro dessa nova concepção. Se
isso não ocorrer, continua o mistério sobre como o país vai querer
passar ao crescimento sustentado
sem o domínio da produção.
Afonso Fleury, 51, é professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP e presidente da Fundação Vanzolini
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