São Paulo, quarta, 23 de dezembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
O mistério do ministério

AFONSO FLEURY

Os recentes episódios de grampos, frituras e intrigas que parecem ser o pano de fundo para a criação do Ministério do Desenvolvimento (ou da Produção) revelam, mais uma vez, o descaso das autoridades para com o problema que pretendem equacionar: a produção.
Dizem os compêndios que produção gera emprego e renda. Mas não é qualquer produção que soluciona problemas econômicos e sociais. Desde que o Japão emergiu como potência econômica, nos anos 70, os demais países desenvolvidos sabem que a produção pode (e deve) ser utilizada de maneira estratégica: dominar e desenvolver conhecimentos nessa área gera vantagens competitivas.
A nova economia globalizada é baseada em "conhecimento". O que agrega valor é a produção intelectual, o trabalho de inteligência baseado em capital intelectual. As montadoras de automóveis são o exemplo mais evidente disso: hoje, as atividades que mais lhes interessam são o marketing, as finanças (os bancos associados às montadoras são extremamente lucrativos), o projeto do produto e a organização da cadeia produtiva. Paradoxalmente, o que menos interessa é o trabalho manual, repetitivo, de montagem, que é terceirizado.
Essa lógica também vale para os países. Em seu livro "O Trabalho das Nações", Robert Reich, da Harvard University, analisa os três tipos de trabalho nessa nova economia: o trabalho rotineiro de produção (que não interessa aos EUA e pode ser exportado); o trabalho rotineiro de serviços (que também não interessa, mas não pode ser exportado); e o trabalho intelectual (ou, como ele denominou, "os analistas simbólicos", que é o trabalho que interessa e deve ser cada vez mais incentivado). Não foi por acaso que Clinton o escolheu como ministro do Trabalho na primeira legislatura (93-97).
Mas o que observamos no misterioso caso brasileiro? Inicialmente, uma premissa de que as empresas locais não são competitivas e que a competitividade decorre de um mercado aberto e de novos investimentos produtivos estrangeiros. Não que as empresas brasileiras tenham sido exemplos de virtude, mas as mais importantes já fizeram o "mea culpa" e estão procurando recuperar o tempo perdido, apesar das condições adversas. Por outro lado, fica evidente a presença, cada vez mais hegemônica, das subsidiárias e a importação de produtos e componentes de maior tecnologia.
Cabe perguntar: o que leva uma empresa estrangeira a investir no Brasil e não em algum outro lugar? A resposta inclui a estabilidade política e econômica, um grande mercado potencial e mão-de-obra relativamente barata. Dadas essas vantagens competitivas, quais são as atividades que essas empresas trazem para o país? De maneira consistente, são as atividades de montagem e acabamento, de logística e distribuição. O comando, a inteligência, as atividades que geram valor são realizadas nas matrizes ou em outros países desenvolvidos.
Para o pessoal de Brasília, isso não é problema. Ao contrário, é sinal de sucesso, porque, afinal, há produção no Brasil. Sim, mas de que tipo? É uma produção que cria poucos empregos, porque está cada vez mais automatizada; gera baixa renda, pois se baseia no trabalho rotineiro de produção; e tem pequena capacidade de desenvolvimento e disseminação de conhecimentos. Não há preconceitos contra as multinacionais; há apenas o reconhecimento de que elas entendem profundamente a lógica da competição globalizada e agem competentemente de acordo com seus interesses. E, enquanto suas operações no Brasil forem lucrativas (e como são!), não haverá motivos para que mudem a estratégia.
Mas é crucial questionar: por quanto tempo teremos esse tipo de produção e de geração de emprego e renda? As empresas estrangeiras têm plena convicção de que mercados são instáveis, especialmente nos países emergentes. Consequentemente, seus critérios de decisão sempre avaliam os riscos de investimentos em sistemas de produção.
Para contrabalançar esse fator, os nossos governantes, especialmente os governadores de determinados Estados, na chamada guerra fiscal, criaram condições que minimizam os riscos das empresas que se instalam em seus domínios. Mas esquecem algo fundamental: as novas fábricas são móveis, voláteis. A construção é modular e os equipamentos são leves, permitindo a translação entre regiões e países. Há inúmeros exemplos na Ásia e na América Central. É como se fosse um circo: na hora em que o público mingua, recolhe-se o toldo e muda-se para outro local.
Há alguma saída? Há. E o ponto de partida é assumir que a produção é uma função inteligente e estratégica para o desenvolvimento econômico e social. Isso implica negociar com as empresas estrangeiras para que tenham perfil mais carregado em atividades de inteligência, implica também a capacitação das empresas locais, a partir de um esforço de melhoria nos recursos humanos e da infra-estrutura logística e de serviços.
Apesar da obviedade da sugestão acima, a questão mais importante é que a definição de uma política nesse sentido não deve ser feita nos gabinetes palacianos, invariavelmente sujeitos a grampos e manobras nem sempre transparentes. Admitindo que o Estado não desfruta de uma base superior de conhecimentos ou tem maior capacitação estratégica, o encaminhamento exige o envolvimento de todos (empresas, sindicatos, universidades etc.), para gerar a criatividade, o suporte e o comprometimento necessários para implementar com sucesso as políticas formuladas.
O Ministério de Desenvolvimento talvez ainda possa ser criado dentro dessa nova concepção. Se isso não ocorrer, continua o mistério sobre como o país vai querer passar ao crescimento sustentado sem o domínio da produção.


Afonso Fleury, 51, é professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP e presidente da Fundação Vanzolini


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