São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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LUÍS NASSIF

Quando o choro foi jazz

A evolução do choro, no Brasil, foi marcada por saltos de forma que modernizaram o som sem provocar a ruptura do estilo. O primeiro foi no início do século, quando Callado, Chiquinha Gonzaga, Patápio, Aristides, Bonfiglio e Nazareth começam a dar forma e a sofisticar sua linguagem.
O segundo, no início dos anos 30, quando passam a convergir as duas maiores linhagens de música do país: a nordestina, de forte influência ibérico-árabe, via os Turunas da Mauricéia, que vão beber nos sons do sertão; e a negra, via Pixinguinha, que vai nadar nas ondas do jazz, com o samba e o choro.
A revolução seguinte do choro ocorre a partir dos anos 40, fortemente influenciada pela música dos cassinos. Era período de guerra e grande parte dos turistas europeus vinha ao Brasil. Há forte movimento de capitais que ajuda a criar infra-estrutura de hotéis, cassinos e balneários que ainda hoje sustenta o turismo em muitas das estâncias hidrominerais brasileiras. Era esse circuito que permitia a vinda de orquestras de fora e a proliferação de músicos nacionais.
Nos EUA, o jazz começa a se sofisticar e tem início a fase de ouro das "big bands". O "chic" da época era os bailes em imensos salões, com os cavalheiros de fraque e as damas de branco.
No Brasil, esse período é um dos mais férteis e, paradoxalmente, dos menos conhecidos da história do choro e da MPB. Vai do início dos anos 40 até a bossa nova e produziu a mais sofisticada geração de músicos brasileiros da história.
Nos anos 30, a música foi liderada por compositores intuitivos. Nos anos 50 e 60, pelos jovens que tocavam violão como João Gilberto. No período dos festivais, por jovens que só depois viriam a aprender a tocar violão como João Gilberto.
Nos anos 40 até meados dos 50, quem mandou no som foram maestros, arranjadores, músicos com formação internacional e com conhecimento sofisticado de harmonia, liderados pelo som maior de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto.
Em São Paulo, ajudaram a engrossar esse movimento músicos como Esmeraldino, no cavaquinho, Orlando Silveira, no acordeão, e Portinho, na clarineta. No Rio, além dos violonistas da rádio Nacional, Radamés Gnatalli e seu Quinteto produziram peças clássicas.
Dentre os músicos do período, poucos foram tão fundamentais como o maestro Severino Araújo, líder da lendária e até hoje atuante Orquestra Tabajara.
Severino nasceu em Limoeiro, em 1917. Passou pelo enorme celeiro musical de João Pessoa, Paraíba, onde, em 1933, havia sido fundada a Orquestra Tabajara, no padrão das "big bands" norte-americanas. Quatro anos depois, o maestro ingressou na orquestra, com outro mito do choro, o saxofonista potiguar K-Ximbinho. Logo depois Severino tornou-se o dono da banda.
A formação da Tabajara incluía o maestro, cinco saxofonistas, quatro trombonistas, quatro trumpetistas, dois bateristas, dois percussionistas, um pianista, um baixista, um guitarrista e dois crooners. O som da banda, influenciado por Glenn Miller, consistia na justaposição de saxofone com clarinete, instrumento do mestre.
Em 1945, Severino e a sua Tabajara se mudaram para o Rio. Mas sua base cultural sempre seria a escola de arranjadores do frevo, o movimento que brota dos becos de Olinda e Recife e se espraia pelo Brasil.
No Brasil não houve orquestra que chegasse perto do balanço da Tabajara. Quando o maestro subia ao palco com seu porte pequeno e sua clarineta e começava a reger, ninguém parava quieto. Seu som era tão amplo que nele cabiam dos sambas ao choro, do samba-canção à gafieira, do baião a Sinatra. Pela orquestra passaram crooners como Elizeth Cardoso e Jamelão. Ao mesmo tempo que ajudava a alargar a cabeça musical brasileira para os novos sons, Severino produziria a maior inovação do choro no período, uma revolução harmônica e melódica, em que a imprevisibilidade da melodia, as quebradas, o vai-não-vai atingem paroxismos que não envergonhariam Benny Goodman. "Espinha de Bacalhau" é um clássico do estilo.
Profundamente brasileira, a orquestra jamais perdeu a gana da internacionalidade. "No dia em que a Orquestra Tabajara deixar de ser internacional eu acabo com ela", disse o maestro. Não há melhor definição para a geléia geral que moldou a música brasileira do que a autodefinição de Severino Araújo: "No Nordeste eu era o maior "suingueiro". Pegava a música brasileira e transformava em suingue, que era a moda. Quando cheguei aqui para fazer baile, o coração bateu mais forte. Aí peguei a música estrangeira e tocava em ritmo de samba."

E-mail - lnassif@uol.com.br



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