São Paulo, quarta-feira, 24 de junho de 2009

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OPINIÃO

Incentivos também precisam ser regulamentados

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

PROPOSTAS de reforma na regulamentação financeira se tornaram onipresentes. As mais significativas vieram dos Estados Unidos, onde o governo do presidente Barack Obama apresentou um pacote abrangente, porém tímido, de ideias. Mas será que essas propostas tornarão o sistema menos propenso a crises? Minha resposta: não. O motivo para o pessimismo é que a crise exacerbou as fraquezas do setor. É improvável que as reformas pretendidas sejam capazes de compensar esse perigo.
No cerne das atividades do setor financeiro, temos empresas com alto endividamento. A atividade central dessas empresas é criar e negociar ativos de valor incerto, enquanto seus passivos, como os acontecimentos recentes serviram para nos lembrar, são garantidos pelo Estado. Isso equivale a uma licença para apostar com o dinheiro do contribuinte. O mistério é que crises só irrompam tão raramente.
O ponto de partida deveria ser o cerne do capitalismo moderno: as empresas que funcionam como sociedades por ações com responsabilidade limitada. Os grandes bancos comerciais estão entre os mais importantes produtos da revolução causada pelas sociedades de responsabilidade limitada. Mas os bancos representam uma categoria especial de empresa; para eles, a dívida é mais que uma maneira de fazer negócios; ela é o negócio. Assim, a responsabilidade limitada deve certamente exercer impacto excepcionalmente forte sobre seu comportamento.
Lucian Bebchuk e Holger Spamann, da Escola de Direito da Universidade Harvard, ressaltam esse importante ponto em um excelente estudo recente. O foco do trabalho está nos incentivos que afetam a gestão de companhias financeiras. A questão tem imensa importância. Em um mundo de alto endividamento e responsabilidade limitada, os acionistas assumirão riscos excessivos de maneira racional, porque podem desfrutar de todos os ganhos obtidos, mas suas perdas estão limitadas ao valor do capital acionário que detiverem, não importa qual seja a dimensão do prejuízo do banco.
Nos bancos contemporâneos, um índice de alavancagem de 30 para 1 com relação ao capital é considerado normal. Pense em dois modelos de negócio com a mesma expectativa de retorno. Em um, os retornos são seguros e firmes; no outro o resultado consiste de períodos prolongados de retornos altos entremeados por ocasionais prejuízos catastróficos. Os acionistas racionais preferirão o segundo modelo.
Os professores Bebchuk e Spamann acrescentam que quatro características do sistema financeiro moderno agravam ainda mais a situação: primeiro, o capital dos bancos é parcialmente bancado por dívidas; segundo, o papel das holdings bancárias pode reforçar ainda mais o incentivo ao risco; terceiro, os executivos são recompensados por alinhar seus interesses aos dos acionistas; e quarto, algumas das formas de remuneração aos executivos (por exemplo, opções de ações) são elas mesmas um mecanismo sincronizado ao das recompensas aos acionistas. Uma solução parece evidente: permitir que os credores sofram prejuízo. Os credores racionais, com isso, passariam a cobrar um ágio por seus empréstimos às operações de maior risco, o que conduziria a um endividamento menor.

Mecanismos de seguro
Uma objeção é que os credores podem estar mal informados quanto aos riscos que os bancos correm. Mas há uma objeção mais forte: muitos credores estão protegidos por mecanismos de seguro garantidos pelos governos. Esses seguros existem devido à importância das instituições financeiras como fontes de crédito, do lado dos ativos, e como fornecedoras de dinheiro, do lado do passivo. Como resultado, os credores têm pouco interesse na qualidade dos ativos de um banco.
Parece que emprestaram dinheiro a um banco. Mas na verdade o emprestaram ao Estado. A grande lição da atual crise financeira é até que ponto esse seguro pode chegar no caso de instituições consideradas grandes ou interconectadas demais para falir. Os grandes bancos raramente enfrentam problemas isoladamente; muitas vezes cometem erros similares; além disso, a quebra de um deles afeta a solvência (real ou percebida) dos demais. Assim, os credores sofrem seu maior risco em caso de crise sistêmica.
Mas uma crise sistêmica é exatamente a ocasião em que os governos se sentem compelidos a sair em seu resgate. Segundo o "Relatório sobre a Estabilidade Financeira Mundial", do FMI, em 2008 o apoio oferecido por bancos centrais e governos nos EUA, no Reino Unido e na zona do euro à área financeira chegou a US$ 9 trilhões -US$ 4,5 trilhões em forma de garantias.
Os balanços dos Estados foram colocados à disposição dos bancos. Isso não significa que o risco para os credores tenha desaparecido. Mas certamente foi atenuado.

Rigidez
A solução conhecida é a de regulamentar essas instituições de maneira muito rígida. Mas uma parte enorme daquilo que os bancos fizeram no começo desta década -os veículos de investimento excluídos dos balanços, os derivativos e o "sistema bancário paralelo" em si- representa esforços de escapar da regulamentação.
A questão evidente é tentar determinar se as coisas serão diferentes desta vez. Qualquer pessoa sensata deveria duvidar disso. Na verdade, isso é ainda mais improvável com a maior capitalização dos bancos. A hora é de apostar tudo.
Uma crise como esta não decorre apenas de respostas racionais a incentivos. Insensatez e ignorância tiveram seu papel. E tampouco acredito que se possa eliminar as crises e bolhas do capitalismo. Mas é difícil acreditar que os riscos assumidos nada tinham a ver com os incentivos. A desagradável verdade do momento é que, hoje, o incentivo a um comportamento arriscado se tornou talvez ainda mais forte do que era o caso antes da crise. A reforma na regulamentação não deveria se limitar aos incentivos. Mas precisa começar por eles.
Uma empresa grande demais para falir não pode ser dirigida de acordo com os interesses dos acionistas, porque deixou de ser parte do mercado. Ou se deve encontrar um caminho que permita fechá-la quando requerido ou sua gestão precisa ser conduzida de outra forma. A verdade é simples e brutal assim.

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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