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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Três alqueires e uma vaca

RUBENS RICUPERO

Em alagoas , rumo a São Luís do Quitunde e para o norte, o canavial desponta no fim da pista do aeroporto e avança por mais de cem quilômetros de estrada, devorando o asfalto do acostamento. Só cede, aqui e ali, empurrado pelos ajuntamentos de ranchos de folha de palmeira, que tentam se defender sob a bandeira de vermelho desbotado do MST. São lavradores desalojados pelo arrendamento da terra aos usineiros, disseram-me.
Como seria possível viabilizar a reforma agrária a partir de precariedade quase terminal como essa? Ninguém parece interessar-se pelo problema. A imprensa anda perdida no exagero obsessivo da crônica policial das invasões e quase não tem olhos para mais nada. Em país no qual o narcotráfico fecha impunemente o comércio em bairros do Rio e, às 11h, bandidos de motocicleta assaltam carros à saída do aeroporto de Congonhas, querem fazer-nos crer que a lei e a ordem pública correm perigo mortal devido aos pobres seres que habitam esses mocambos. Vá lá que as ocupações tenham importância política imediata. Contudo o conflito pela terra se faz em nome de alguma coisa maior. Se a reforma se revelar um logro ou medida às meias, fadada ao fracasso, como a Abolição, fica tudo mais trágico.
Existe futuro para a agricultura familiar e artesanal em economia encruada, sem crescimento nem demanda interna, cujo único setor dinâmico, impulsionado pelo mercado externo, é o agronegócio de exportação, movido a doses maciças de capital, tecnologia e escala de produção? Num mundo em que as regras da OMC (Organização Mundial do Comércio) vão gradualmente se impondo ao comércio agrícola, terá essa pequena agricultura condições de sobreviver se exposta à concorrência estrangeira e, se passar a ser ilegal, recorrer a subsídios e barreiras de proteção?
As duas agriculturas mais avançadas, a dos EUA e a da França, não conseguem deter a acelerada extinção dos pequenos produtores, apesar dos subsídios e do protecionismo. Desde 1960, dobrou, nesses países, a área média das fazendas, à medida que se inviabilizava a pequena propriedade. Um terço dos camponeses franceses desapareceu em 12 anos e a população rural das nações ricas oscila entre 1% e 3,5%.
É certo que a concentração dos subsídios em mãos dos grandes tem muito a ver com isso. Não se pode negar, todavia, que a concentração dos pagamentos obedece à lógica da agricultura capitalista. A escala torna mais eficiente a produção de quase todos os grãos -trigo, milho, soja, cevada, arroz-, bem como da carne bovina e das principais culturas de mercado -cana, algodão, frutas e legumes para a industrialização. O que sobra? A horticultura, os cultivos "gourmets", certos tipos de atividade baseados na dependência da agroindústria -a carne de suínos e de frango em relação aos frigoríficos, os fornecedores de laranjas para com os esmagadores.
Pode ser que no Brasil a coexistência de economias de eras históricas distintas permita algum espaço para culturas de subsistência, de produtos fora do circuito comercial. Por quanto tempo, porém, e em que nível de renda?
Quanto às negociações comerciais na OMC, na Alca ou no Mercosul, o perigo não é imaginário. Um dos problemas dramáticos do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) é justamente o impacto sobre os pequenos produtores mexicanos da abertura do mercado para a carne suína e de frango dos EUA e, até 2008, a liberalização do feijão e, sobretudo, do milho, base da alimentação e último refúgio dos camponeses.
O princípio geral das negociações, violado na prática mas ganhando terreno aos poucos, estipula que não deve haver barreiras contra quem dispõe de qualidade e preço, seja nacional ou estrangeiro. É por isso que as propostas brasileiras são afinadas com os interesses da agricultura de exportação, como não poderia deixar de ser. Se queremos que a soja, o açúcar ou o suco de laranja do Brasil tenham acesso livre ao mercado dos outros, não podemos barrar a entrada no nosso do vinho, trigo, arroz e frutas do Mercosul e do Chile. Em consequência, a liberalização comercial, por meritória que seja, não deixa de exacerbar a concorrência de fora, tornando mais difícil ainda a sobrevivência dos pequenos, já ameaçada pelos grandes do próprio país.
É essa a implicação mais grave das negociações, não tanto a limitação dos subsídios. Como a reforma agrária tem caráter social, não econômico, não será difícil inserir na "caixa verde", isto é, nos subsídios legais, o apoio financeiro à sua execução. A rigor, melhor teria sido imitar a Austrália, que incluiu explicitamente nessa categoria os gastos com a aposentadoria de agricultores. O Brasil já tem um programa de ajuda à agricultura familiar e terá de manter por muito tempo um similar, a fim de amparar os assentamentos com algo mais que a cesta básica. O mais provável é que a limitação venha da capacidade do Tesouro de levantar recursos, se tiver de seguir produzindo saldos primários para contentar o FMI e pagar aos rentistas da dívida.
Embora aumentem o já considerável grau de complicação da reforma, me sinto no dever de suscitar questões como essas, praticamente ausentes do debate. Não para insinuar que a pequena propriedade é inviável na agricultura. Não vejo razão para que ela não possa constituir o núcleo de um desenvolvimento rural humano, assim como a pequena e a média empresa são, na indústria e no comércio, as principais geradoras de emprego. Da mesma forma que nesses setores, contudo, a agricultura familiar necessita de políticas adequadas de crédito, fomento tecnológico, de alívio de impostos e muitas outras. É possível que a sua viabilização dependa de uma organização de tipo associativo ou cooperativo.
Conforme começa a ocorrer na Europa, será preciso que o Estado remunere o papel da pequena agricultura na proteção do ambiente, dos recursos aquáticos, na produção de alimentos orgânicos. Para isso, a Embrapa e as universidades rurais devem ajudar o governo e o MST a desenvolver fórmulas que tornem possível dar uma vida digna e decente ao nosso lavrador, o que certamente exigirá muito mais que "três alqueires e uma vaca".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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