São Paulo, quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PAULO RABELLO DE CASTRO

Cinzas de Carnaval


É uma tragédia financeira e fiscal que os governos tenham lançado mão de tantos trilhões, que trarão pouco resultado


A TRADIÇÃO católica lembra ao homem que sua euforia de viver, seus eventuais excessos e até toda beleza vão se converter, um dia, em cinzas. É o fim de ciclo que se comemora nesta Quarta-Feira de Cinzas. Alguns foliões teimarão em continuar pulando e sua alegria ainda vai até domingo. Nossa persistente euforia me faz pensar que isso é muito igual à fé que guardamos de poder passar incólumes aos efeitos da megabolha de Wall Street. Essa gostosa folia pode se estender um pouco mais. Porém os sinos tristes das igrejas nos vêm chamar à razão. Fato é que não sobrou pedra sobre pedra da construção da era Greenspan-Bush. O ajuste da economia mundial entra agora numa segunda fase, muito mais aguda.
Não há mais gorduras localizadas para queimar. Mundo afora (salvo no Brasil), essas gorduras já se foram, na queda livre dos mercados, em 2008. Caracas está em pânico, Dubai desertificou-se. Em Nova York e em Xangai, pode-se hoje comer sem reserva e com desconto nos melhores restaurantes.
Entramos na quaresma do corte na carne. Encaro, portanto, com estóica conformidade, que os bem-intencionados planos de Obama não funcionarão para além do objetivo de garantir uma rede de proteção social aos deserdados da sorte. Pena que, no topo da lista, surgem os pobres banqueiros e seus credores, sempre os primeiros na fila da ajuda...
A carne será cortada, e fundo, pela simples razão de que não existe desalavancagem de créditos sem forte contração de atividades econômicas. Uma coisa puxa a outra. Explico: a bolha de Wall Street (leia-se, também, a da Europa, a da Ásia -especialmente da China- e a do Leste Europeu) constituiu-se a partir de um volume global de créditos, inclusive derivativos, muito superior ao capital das instituições bancárias e hipotecárias que lhe dava suporte. Com o estouro da bolha, diga-se da confiança recíproca dos jogadores, passaram todos a tentar "matar" suas exposições a crédito.
Isso é o fenômeno da desalavancagem, que assume um jeito de avalanche, pois decorre de todos tentarem reverter, ao mesmo tempo, os excessos de financiamentos concedidos ante uma base insuficiente de capital.
A RC Consultores calcula na faixa de US$ 10 trilhões a destruição de créditos que ocorre nesta fase inicial de desalavancagem. Isso é pelo menos o dobro dos valores somados de todas as injeções de ajuda dos governos a suas respectivas economias (estas na faixa de US$ 5 trilhões). Só na fase final do ciclo de ajuste -após os cortes na carne-, aí, sim, seria útil aplicar alguns estímulos fiscais ao estilo do que Keynes sugerira a Roosevelt. No momento atual, ainda estamos ladeira abaixo. Durante os próximos 12 a 18 meses, a única providência eficaz é minorar o sofrimento dos que estão nas camadas mais baixas do soterramento financeiro. É uma tragédia fiscal e financeira que os governos, abalados pelas pressões políticas, tenham lançado mão de tantos trilhões, que terão tão pouco resultado prático, tentando salvar bancos zumbis e prometendo pacotes salvacionstas, quando cada centavo desses gastos trilionários pressionará a dívida pública futura desses países.
Os governos fariam melhor se concentrando em estimular as atividades rentáveis de milhões de pequenos e médios negócios, geradores da maioria dos empregos nos países afetados. O Brasil não é exceção. O país do Carnaval vai batucar seu pandeiro por mais alguns dias. Por sorte, a bolha só nos pegou de raspão. Nem por isso devemos deduzir que escaparemos de ser cinzas no velho ciclo especulativo, antes de ressurgirmos para outro esperançoso alvorecer.


PAULO RABELLO DE CASTRO , 59, doutor em economia pela Universidade de Chicago (Estados Unidos), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

paulo@rcconsultores.com.br



Texto Anterior: Instituição prefere negociar com cliente para não perder dinheiro com retomada
Próximo Texto: Recuperação pode começar em 2010, afirma Bernanke
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.