São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2008

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MÁRCIO HOLLAND

A crise e a hipótese indefensável

Não é razoável que um "barquinho" como o Brasil seja capaz de navegar contra os ventos fortes do Norte

EM MEIO às recentes turbulências financeiras enfrentadas pelas economias mundiais, um dos pontos mais discutidos entre economistas diz respeito a quanto os países emergentes estão descolados de uma provável recessão nos Estados Unidos.
De um lado, a maior economia do mundo enfrenta sérios problemas de confiança de investidores e de consumidores; de outro, a crise atual é de intensidade mais incerta e mais complexa do que os estouros de bolhas em mercados acionários.
A maior economia do mundo produz 28% da produção mundial, importa mais de US$ 2 trilhões de outras economias, gerando déficit comercial com o mundo superior a US$ 750 bilhões. Muitos vêem a China como uma possível nova âncora mundial, mas vale destacar que os EUA, sozinhos, são responsáveis por mais de 30% das exportações chinesas. Mesmo crescendo em média 9% ao ano nos últimos 30 anos, a economia chinesa ainda não chega a 18% do tamanho da dos EUA.
Os EUA compram muito, e muito mais do que vendem, de quase tudo e de quase todos. O maior comprador do mundo é o maior devedor do mundo. Atualmente, acumula déficits em transações correntes e déficits fiscais, mesmo que esses últimos tenham sido atenuados nos últimos anos. Famílias e governo gastam muito, comprando o que produzem e o que não produzem. Vivem assim, além de seus meios, com baixas taxas reais de juros e com amplo mercado de crédito; se financiam por terem os mais profundos e sólidos mercados financeiros, depositários das reservas acumuladas pelas economias que poupam, as economias emergentes. Esse arranjo tem sido rotulado como Bretton Woods 2. Ao longo dos últimos anos, generalizou-se a idéia de que esse seria um mundo eterno.
Não só se acreditava na idéia de que as finanças globais estavam em equilíbrio, com os desequilíbrios comerciais e fiscais norte-americanos sendo compensados pelo desespero das economias emergentes em acumular reservas cambiais, como agora acreditam que a recessão nos EUA poderia afetar muito pouco o resto do mundo. Essas são duas hipóteses hoje indefensáveis, desmascaradas pelos fatos atuais. Bretton Woods 2 não existe porque não há "concertação" global, mas, sim, de um lado, demanda por capitais nos mercados emergentes para construir colchão de liquidez em clima de após crises cambiais, e, de outro, necessidades dos EUA de financiarem políticas fiscais irresponsáveis.
Sobre a hipótese do descolamento, o gráfico nesta página fala por si. O co-movimento nas taxas trimestrais de crescimento real das economias na zona do euro, nos EUA e em um emergente como o Brasil é algo que dispensa sofisticações estatísticas e econométricas. Estamos todos em um mesmo oceano revolto e não é razoável que um "barquinho" como o Brasil, do tamanho de 1% do comércio mundial, seja capaz de navegar contra os ventos fortes vindos do Norte; mesmo o bom barco europeu parece que se avaria nas turbulências globais. Pode-se defender a hipótese de que estamos melhores agora, mas não se pode afirmar que não seremos severamente afetados no médio prazo, em caso de uma recessão acometer os EUA.


MÁRCIO HOLLAND, 43, é pós-doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV-EESP) e pesquisador do CNPq.


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