|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RUBENS RICUPERO
Complexidade e caos
Ou melhoramos as
instituições e a educação a fim
de decifrar a complexidade ou
seremos devorados pelo caos
|
ENTRE A balbúrdia nos aeroportos e o terror do PCC, haverá algo em comum? E entre o poder alternativo do narcotráfico
nos morros cariocas e as rodovias
que se derretem em lodo a cada
aguaceiro? Ou entre o apagão elétrico e o mensalão, a volta dos piratas
do século 16 ao porto de Santos e o
engarrafamento quase permanente
das marginais, entre as quadrilhas
organizadas de assaltantes de caminhão e a incapacidade de crescer a
5% sem recair na inflação?
Em aparência disparatados, os fenômenos acima e outros fáceis de
imaginar são todos manifestações
do fracasso em lidar com a complexidade. Distraídos com a discussão
sobre os índices de crescimento, deixamos de perceber que desenvolvimento é o processo contínuo pelo qual uma sociedade aprende a administrar realidades cada vez mais complexas.
Quando dizemos que os suíços ou
suecos são desenvolvidos, o que temos em mente não é apenas que eles
são mais ricos do que nós. O que está
subentendido é que também sabem
gerir melhor os trens e as escolas
primárias, as florestas e os hospitais,
as universidades e as penitenciárias,
os museus e os tribunais. Em outras
palavras, ser desenvolvido é uma totalidade.
No Brasil, temos ilhas de excelência: o Departamento do Tesouro, a
Embrapa, o Itamaraty, algumas outras que não me ocorrem. Mas estão
afogadas em oceano de incompetência, em certos pontos com profundidades abissais. As demandas de exigência crescente de uma sociedade
dinâmica são atendidas pelas ilhas
de eficiência, mas logo se atolam nos
gargalos da inépcia.
É o que se vê com a aviação civil.
Quando a Varig estava à beira do
fim, dizia-se que sua ruína mergulharia em crise o transporte aéreo.
Hoje, a empresa praticamente acabou, mas as outras companhias privadas tomaram-lhe o lugar sem
grandes traumas. O que efetivamente provocou a desordem foi o setor
público, incapaz de expandir os serviços de controladores à medida que
aumentavam os vôos. Não se deve
idealizar a empresa privada, mas a
verdade é que, graças ao darwinismo
da concorrência, algumas delas passaram no teste definitivo: internacionalizaram-se e competem com
êxito em mercados difíceis.
O tamanho, a lei dos grandes números são fatores que exacerbam o
desafio da complexidade, sobretudo
quando a velocidade do aumento da
população e o inchaço desmesurado
das metrópoles multiplicam o efeito
da dimensão. Meu professor de geografia, Fábio Macedo Soares Guimarães, dizia que éramos incompetentes para administrar qualquer cidade que ultrapassava 500 mil habitantes. A mesma idéia estava contida no conceito de "monster-countries", países-monstros, de George
Kennan: a combinação de territórios continentais com populações
descomunais. Nem sempre é vantagem ser "gigante pela própria natureza".
Em Nova York, Nova Orleans e
Paris, houve episódios em que a vida
urbana quase sofreu colapso, às vezes com saques generalizados, por
culpa dos apagões, do furacão Katrina ou dos motins da periferia. Até
agora, em São Paulo, tivemos a sorte
de escapar de um desastre natural
ou humano que pusesse à prova, de
modo simultâneo, o conjunto de
nossos sistemas viários e de segurança, todos em desmoronamento
devido a anos seguidos de subinvestimento e obsolescência.
São esses os desafios de segurança
do nosso tempo, não as fantasiosas
hipóteses de invasões estrangeiras
com que os Estados-maiores se preparam para voltar a combater as
guerras do passado. O despreparo
felizmente tem cura: a criação de
instituições e educação capazes de
nos ajudar a administrar sociedade
complexa. Com escolaridade média
inferior à educação primária em países avançados, os setores dirigentes
brasileiros serão sempre derrotados
pela complexidade.
Não se trata de elitismo. A intuição, a inteligência natural podem
permitir ao não-instruído ser político astuto ou empresário de sucesso.
Problemas complexos, porém, exigem conhecimento técnico, informações especializadas, e isso só se
obtém pela educação de qualidade.
Ou melhoramos as instituições e a
educação a fim de decifrar a complexidade ou seremos devorados pelo
caos.
RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
Texto Anterior: Grandes marcas são acusadas pela PF de fraudar importação Próximo Texto: Vinicius Torres Freire: O novo Estado investidor de Lula Índice
|