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São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Banco Central "terceirizado"?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Parece que o presidente da República anda insatisfeito com as agências reguladoras, herdadas do governo Fernando Henrique Cardoso. Em encontro com líderes do Congresso, na semana passada, o presidente teria dito que o Brasil foi "terceirizado". Segundo ele, agências como a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e a ANP (Agência Nacional do Petróleo) têm independência demais em relação às políticas do governo e acabam funcionando a favor dos setores que deveriam supervisionar. Lula teria se queixado de que não passam pelo governo decisões fundamentais, como os aumentos das tarifas de energia elétrica e de serviços telefônicos.
A autonomia das agências foi, como se sabe, instituída de forma deliberada pelo governo FHC, com a intenção de garantir a estabilidade das regras do jogo independentemente do governo que viesse a ser eleito. Seria uma espécie de "blindagem" contra mudanças desejadas pelo futuro governo. A autonomia repousa no fato de que os dirigentes dessas agências gozam de estabilidade no emprego, isto é, têm mandatos fixos, longos e não coincidentes com os do presidente da República.
Ora, é exatamente isso que está sendo proposto para o Banco Central! É o aspecto central do projeto de "lei de responsabilidade monetária", também herdado do governo FHC e que conta com apoio de setores do governo Lula. A diretoria do Banco Central também passaria a ter mandatos fixos e não coincidentes com os do presidente da República. Em outras palavras: se o presidente da República permitir, o Banco Central também será "terceirizado".
Difícil imaginar uma "blindagem" mais eficiente. O Banco Central é mais importante do que todas as agências reguladoras juntas. Trata-se de uma instituição que acumula inúmeras funções e governa grande parte da política econômico-financeira. Não é por acaso que muitos parlamentares do PT não querem nem ouvir falar nesse assunto. Na semana passada, noticiou-se que a discussão da proposta de autonomia para o Banco Central foi adiada para o segundo semestre.
Haverá protestos do FMI? Pode ser. O tema está presente no acordo em vigor com o Brasil, que foi assinado por Pedro Malan e Armínio Fraga em agosto de 2002.
Duas observações, porém. Primeiro: a intenção de conceder autonomia formal ao Banco Central aparece no acordo apenas como objetivo geral, mencionado na carta de intenções. Não constitui "critério de desempenho", isto é, não condiciona a liberação das parcelas do empréstimo.
Segundo: uma eventual insistência do FMI nesse ponto constituiria um caso clássico de "macaco, olha o teu rabo!". O Fundo é uma instituição monetária estritamente dependente dos governos que o controlam. Os seus diretores-executivos não desfrutam de estabilidade no emprego. O casuísmo, não raro politicamente orientado, tem sido a marca registrada da sua atuação.
Existe até quem sugira que o FMI seja "despolitizado", seguindo o modelo de banco central independente. Os seus diretores-executivos passariam a ser nomeados para mandatos longos e proibidos de receber instruções politicamente motivadas dos governos dos seus países de origem (ver Barry Eichengreen, "The Globalization Wars", "Foreign Affairs", July/August 2002). Não consta, entretanto, que esse tipo de sugestão esteja sendo seriamente considerado...
No Brasil, a questão da autonomia precisa ser abordada com cuidado especial. Nas suas relações com o sistema financeiro, o Banco Central é um exemplo do conhecido fenômeno da captura do regulador pelo regulado. Estabeleceu-se uma relação simbiótica, para não dizer promíscua, entre autoridades monetárias e instituições financeiras privadas, que leva frequentemente a uma dissociação entre a ação do Banco Central e os interesses públicos.
O problema é antigo. Nos anos 80, quando a ala mais à esquerda do PMDB insistia na proposta de estatização do sistema financeiro, o saudoso Severo Gomes observou: "Já me daria por satisfeito se conseguíssemos estatizar o Banco Central!".
Com a autonomia formal do Banco Central, a sua "estatização" ficaria ainda mais distante. Hoje, a possibilidade que tem o presidente da República de substituir os dirigentes do banco, a qualquer momento, funciona como um contrapeso (ainda que frágil) à influência hegemônica dos interesses financeiros.
Nesta semana, o presidente Lula voltou a prometer que vai mudar o modelo econômico. Lamentou, mais uma vez, a vulnerabilidade do país a turbulências externas como as que estão sendo geradas pelo provável ataque dos EUA ao Iraque. "Um país do tamanho do Brasil", disse ele, "não poderia estar tão dependente do capital internacional e fragilizado como está hoje".
A contribuição do Banco Central é essencial para superar esse quadro de dependência e fragilidade. É ele que administra a política cambial e as reservas internacionais. Dele dependem, também, a regulação do mercado de câmbio e o controle dos movimentos de entrada e saída de capital.
A superação da vulnerabilidade externa se tornará muito mais difícil, talvez impossível, com um Banco Central "terceirizado", comandado por pessoas da confiança do mercado financeiro e protegidas por mandatos fixos e longos.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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