São Paulo, sábado, 27 de julho de 2002

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ANÁLISE

Bush está interessado na Previdência ou no lucro dos amigos?

PAUL KRUGMAN

Desde os primeiros meses de 2000, o índice Nasdaq caiu cerca de 75%, e o Standard & Poor's 500, de base mais ampla, em mais de 40%. Não se trata de prejuízos estritamente contábeis; são desilusões e até mesmo dificuldades materiais para milhões de americanos. Agora, mais do que nunca, precisamos de instituições que ofereçam uma rede de segurança para a classe média.
No entanto, George Bush continua querendo acreditar que está em uma festa como em 1999. Na quarta-feira, ele disse que continuava favorável a uma privatização parcial do Seguro Social.
Tenham em mente que os americanos comuns já estão mais vulneráveis do que nunca às flutuações do mercado de ações. Há vinte anos, a maioria dos trabalhadores tinha planos de pensão com "benefícios definidos", ou seja, os empregadores lhes prometiam pensões no valor de uma dada quantia anual. Durante a longa alta das Bolsas, no entanto, esse tipo de plano foi em larga medida substituído pelas contas 401(k) -planos de "contribuição definida" cujos rendimentos dependem do resultado dos mercados. Isso parecia ótimo quando as ações estavam subindo. Mas agora muita gente vai terminar descobrindo que não pode se aposentar, ou que terá de viver com muito menos dinheiro do que esperava. Para alguns, o Seguro Social será a única coisa que resta.
Bush começou a defender a privatização do Seguro Social em uma época em que as pessoas continuavam acreditando que as ações só tinham um destino: para cima. Mesmo então, a proposta defendida por ele não fazia sentido; como já expliquei no passado, baseava-se na alegação de que 2-1=4, de que era possível transferir os impostos trabalhistas pagos pelos trabalhadores mais jovens para contas pessoais de poupança e ainda assim pagar os benefícios prometidos aos trabalhadores mais velhos. Mas agora até mesmo essa promessa sem sentido de que as contas individuais de investimento teriam retorno semelhante ao dos mercados de ações parece nada atraente. Assim, por que o presidente continua insistindo na idéia?
Um motivo é ideológico: os conservadores da linha dura estão determinados a construir uma ponte que nos leve de volta aos anos 20. Outro é o complexo de infalibilidade de Bush: recuar quanto à privatização seria admitir, pelo menos implicitamente, que ele cometeu um erro, e esse governo nunca, nunca, o faria.
Mas talvez exista mais um motivo. Pergunte quem se beneficiaria diretamente com a criação de "contas pessoais de investimento" sob a égide do Seguro Social?
As contas pessoais não funcionarão como uma carteira de ações. A Administração do Seguro Social não pode nem vai virar uma corretora de ações para 130 milhões de clientes, a maioria dos quais terá contas de montante bastante pequeno. Em vez disso, o provável é que um esquema de privatização exija que os indivíduos optem por um dentre uma lista de fundos de investimento privados pré-selecionados.
Isso implicaria em enormes comissões para os administradores desses fundos. E é evidente que os prováveis beneficiários gostariam de demonstrar sua gratidão, com antecedência: na eleição de 2000, de acordo com a opensecrets.org, os contribuintes para campanhas políticas classificados em duas categorias, "valores mobiliários e investimento" e "finanças diversos" (basicamente operadores individuais de mercado) deram a Bush quase seis vezes mais dinheiro do que deram a Al Gore.
Nesse caso, igualmente, o passado de Bush serve como prólogo. Eu contei em coluna anterior a história do Utimco, o fundo da Universidade do Texas que, enquanto Bush governava o Estado e seu atual secretário de Comércio, Donald Evans, presidia o conselho de regência da universidade, aplicou mais de US$ 1 bilhão em instituições privadas, muitas delas estreitamente ligadas a Bush em termos de negócios ou pessoais. Entre os beneficiários estavam os irmãos Wyly, que mais tarde financiaram uma campanha decisiva de difamação contra John McCain. ("Bush mostra suas cores venenosas", era o título de uma reportagem sobre a campanha, de autoria de Andrew Sullivan, um jornalista online bastante conhecido.)
Será que as economias que os americanos acumulam para sua aposentadoria deveriam realmente ser usadas para recompensar os amigos do governo? Perguntem aos professores do Texas. Em uma das muitas transações estranhas acontecidas durante o governo estadual Bush, o sistema de aposentadoria dos professores do Texas vendeu diversos edifícios sem concorrência aberta, registrando um prejuízo de US$ 70 milhões, para uma empresa controlada por Richard Rainwater, um dos protagonistas cruciais na ascensão de Bush à riqueza.
Em 16/08/1998, em uma reportagem no "Houston Chronicle" - que deveria ser leitura obrigatória para quem quer que tente entender o governo Bush-, o jornalista R. G. Ratcliffe resumia de maneira muito direta essa e muitas outras transações incomuns: "Surge um padrão quando um Bush está no poder, os associados dos Bush nos negócios se beneficiam".
Evidentemente, as contas de investimento pessoal no Seguro Social teriam de ser administradas por instituições nacionais de boa reputação. Bush não entregaria a administração do sistema aos seus velhos cupinchas do Texas, entregaria?
Quando um político insiste em uma proposta que, sob qualquer critério normal de cálculo, estaria completamente desmoralizada, é preciso imaginar o por quê.


Paul Krugman, economista e professor na Universidade Princeton (EUA), é colunista do "New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


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