São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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LUÍS NASSIF

O estadista do Brasil

O momento em que se escolhe o novo presidente do Brasil é boa hora para avaliar os antecessores. Quem foi o maior presidente do Brasil? O tempo tende a decantar as críticas, a minimizar os erros e a valorizar os acertos, mas, dependendo da preferência política, quase inevitavelmente os analistas se dividirão entre três nomes: Getúlio, JK e FHC.
Sempre será possível minimizar a importância de Vargas, mencionando a pesada herança fascista que legou. Ou a irresponsabilidade fiscal de JK, abrindo as portas para a crise econômica do período seguinte. De Fernando Henrique Cardoso se lembrará do desastre do câmbio, da despreocupação com o desenvolvimento, do fato de ter desperdiçado uma conjugação de fatores internacionais favoráveis poucas vezes vista.
Mas todos cumpriram papel político relevante, mudando para sempre a face do Brasil. Com Vargas, o país começa a se industrializar, o Estado a se organizar. Com JK, o Brasil descobre o futuro e a industrialização. Com FHC, ingressa em uma era de modernização política.
Mas ousaria afirmar que meu candidato a estadista do século foi o marechal Humberto Castello Branco, primeiro presidente do governo militar que usurpou o poder em 31 de março de 1964.
Eu era adolescente quando ocorreu o golpe e o marechal tornou-se presidente. Ele tinha raízes mineiras através de dona Argentina, sua esposa, que era irmã de "mère" Inês, a severa professora de português do colégio São Domingos, que despertou a paixão de Drummond, chegou a noivar com Negrão de Lima para, finalmente, encontrar a paz na congregação dominicana e nas suas aluninhas, tão bonitinhas com seus vestidos plissados. Presidente, o marechal virou alvo direto das nossas verrinas, das paródias, piadas, embora não chegassem aos pés daquelas inspiradas pelo marechal Costa e Silva.
Mesmo representando a ditadura, havia um quê simpático no marechal. Talvez a feiúra, que era maiúscula, a falta de arrogância. Uma ou outra informação positiva sobre ele sempre vazava através da pesada e justificada rede de preconceitos que nos cercava em relação a tudo o que vinha "do lado de lá". Dizia-se que havia tido papel relevante na campanha da Itália, que era estrategista primoroso, que não pensava em perpetuar o poder militar, que tinha idéias reformistas.
Seu governo não foi fácil. De um lado, tinha de administrar a linha-dura do Exército, liderada por Costa e Silva. De outro, o poder civil, não apenas os seguidores do ex-presidente João Goulart, mas também os antigos aliados civis. Pela frente, vinha uma crise gigantesca, com inflação, estagnação, máquina pública destruída pela fisiologia.
No plano político, o marechal montou uma estratégia à altura de Clausewitz. Tomou medidas fortes, os primeiros atos institucionais, cassou políticos da oposição e, em um certo momento, degolou a mais importante liderança civil do país, o ex-presidente Juscelino Kubitschek.
No plano econômico, cumpriu o papel de reformador, graças a um desprendimento político que nem JK nem FHC foram capazes de ter: o de afrontar incompreensões, não temer a impopularidade, para plantar sementes que só frutificariam anos depois.
Castello consolidou as melhores idéias germinadas na década anterior. Cercou-se de quadros tecnocráticos primorosos, lançou o primeiro plano de estabilização consistente do período, tendo de administrar enorme insatisfação popular, dentro de um quadro político não consolidado. Com ele, houve a modernização da Receita, da legislação trabalhista, o deslanche do BNDES, a criação da Finep, do Banco Central, políticas voltadas para o desenvolvimento e para a inovação.
Fracassou na política agrária e no plano político. Ao promulgar atos institucionais, cassar pessoas, sua intenção era limpar rapidamente a área, anular a pressão dos radicais e devolver o poder aos civis. Evitou um banho de sangue que a linha-dura pretendia, mas abriu a caixa de Pandora para 20 anos de poder militar.
Ousaria dizer que, por sua visão de futuro e desapego ao poder, o que Castello fez em dois anos foi muito mais do que uma transição: foi o grande trabalho de estadista do século.

E-mail - lnassif@uol.com.br


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