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São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A austeridade é burra (ou uma estátua para Malan)

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Houve uma época em que Nelson Rodrigues era uma presença constante, quase obrigatória, nesta coluna. As suas "boutades" e frases de impacto amenizavam a aridez dos temas econômicos.
Eu me lembro de que, no início, causava uma certa estranheza a referência insistente e até obsessiva a um escritor que nada entendia de economia e acompanhava a pantomima dos economistas do seu tempo com "divertido horror", como dizia. Apesar disso, o fato é que ele fazia as suas incursões relâmpago em questões financeiras. Uma das minhas preferidas: "O dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro".
Com o passar do tempo, porém, deu-se um fenômeno curioso. Comecei a nutrir, confesso, um certo ressentimento contra o excepcional cronista. Ficava com a sensação amarga de que as pessoas só me liam na expectativa de esbarrar nas suas piadas e tiradas geniais. O meu amigo Osiris Lopes Filho, num dos seus rompantes, chegou a sugerir que eu me especializasse em "psicografá-lo". Nesses momentos, a minha vaidade autoral entrava em profunda recessão.
Resolvi, então, submeter os leitores à ausência de Nelson Rodrigues. Durante meses e meses, nenhuma menção, nenhuma vaga referência. Foi uma verdadeira provação.
Não funcionou. Ainda outro dia, um conhecido reclamou: "Você nunca mais falou no Nelson Rodrigues. Fala de novo nele, Paulo, fala!". Prometi fazê-lo, e estou aqui cumprindo a promessa.
Nas minhas insônias, que são muitas, releio às vezes as suas crônicas. Na semana passada, topei com a seguinte observação econômica: "Não se promove a grandeza de uma nação com escrúpulos cretinos (a austeridade é burra)". A observação me pareceu de fremente atualidade.
"Lançam a inflação na cara de Juscelino", escrevia ele em 1961. "Mas o Brasil estava de tanga, estava de folha de parreira, ou pior: -com um barbante em cima do umbigo. Todo o Nordeste lambia rapadura. E vamos e venhamos: para um povo que lambe rapadura, que sentido têm os artigos do professor Gudin? Sempre existiram os Gudins e o povo sempre lambeu rapadura. Ao passo que o Brasil só conheceu um Juscelino."
Eugênio Gudin, para quem não sabe, era um dos principais economistas liberais do país naquela época, foi a voz econômica da UDN e precursor de Roberto Campos. A contraposição JK-Gudin é certeira.
No Brasil, sempre houve duas grandes correntes de pensamento e ação em matéria de política econômica e política internacional. Uma encara o Brasil como sócio menor e acanhado de um projeto liderado pelos Estados Unidos e outros países desenvolvidos. No campo econômico, a sua marca registrada é a mentalidade de guarda-livros, a busca da estabilidade monetária e do equilíbrio fiscal, ainda que com sacrifício do desenvolvimento. Ela passa, por exemplo, por Campos Salles, Eugênio Gudin, Roberto Campos, Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan.
A outra corrente vê o Brasil como país-continente, de imenso potencial, capaz de figurar entre as principais nações do mundo. Ela inclui Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Roberto Simonsen, Celso Furtado, Dilson Funaro, Barbosa Lima Sobrinho e o próprio Nelson Rodrigues. "Se o Brasil não existisse", escreveu ele, "o Maranhão e o Piauí seriam grandes nações sul-americanas. Madureira seria outro grande do continente."
E o presidente Lula? O tempo dirá. Por enquanto, o seu governo oscila entre as duas correntes. Em Brasília, muitos compreendem que o Brasil não pode mais se acomodar com o padrão medíocre dos anos 90. Percebem que, se o Estado brasileiro continuar dominado por "escrúpulos cretinos", o país não sairá do lugar.
Por outro lado, no Ministério da Fazenda há quem declare, em alto e bom som, que o ex-ministro Pedro Malan e a sua equipe merecem uma estátua em praça pública...


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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