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VINICIUS TORRES FREIRE
A mistificação antiestatal
No chilique aéreo ataca-se o governo, mas não a empresa privada; liberalóides criticam Estado, mas levam benesses
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NA REAÇÃO ao espetáculo de
incompetência nos aeroportos houve dois tipos de chiliques sintomáticos entre "analistas" e comentaristas de mídia. Um chilique, da parte de sempiternos bajuladores de FHC, foi pespegar na vergonha aérea o apelido de "apagão",
que surgira durante a catástrofe do
racionamento de energia, pane muito mais grave e que na época merecera condescendência do pessoal do
chilique aéreo. Mas passemos.
O outro chilique manifestou-se na
indignação "cidadã" contra o Estado, no caso representado pelo governo Lula. Agora, que a autoria do vexame aéreo passou a ser assinada
também por uma empresa privada,
a turma do chilique antiestatal assovia, olha para o lado: ficou difícil falar mal do governo. Mas em breve virá alguém dizer que, como Lula danou as agências reguladoras, novas e antigas, a supervisão do setor privado virou bagunça. Culpa do governo.
O chilique aéreo é um aspecto da
mistificação antiestatal, pensamento dominante desde os anos 90. Mas
também é o reverso da medalha da
ambivalente tara nacional pelo Estado, do desejo sadomasoquista de
vergastar governos e a eles se sujeitar a fim de pedir benesses. O Estado
é doador e culpado universal.
Considere-se o porta-voz liberalóide padrão, em bancos, mídia, partidos ou mesmo no governo. Observe-se como pronuncia, em odor de
superioridade moral e intelectual,
expressões do tipo "quem paga a
conta da gastança é o contribuinte".
Muita vez trata-se de pose picareta de quem apenas não quer pagar
imposto. Mas o que interessa mais é
o fato de que, no palavrório de tais
pregadores da cidadania tributária,
o sagrado dinheiro do contribuinte
parece desaparecer nas profundezas
do inferno estatal. O Estado parece
uma entidade fora do tempo e do espaço sociais e políticos. Ninguém
parece se beneficiar dos fundos públicos que passam pelo Estado, ninguém influencia a coleta e a redistribuição desses dinheiros.
Mas 8% do PIB "voltam" para a
sociedade em forma de benefícios
do INSS. Outros 8% retornam em
forma de pagamentos de juros para
classe alta e instituições financeiras.
E aí já se vão dois terços do que o governo federal arrecada em impostos.
Outros porcentos mais voltam na
forma de subsídios para empresas,
educação e saúde de ricos, para estradas que levam a casas de campo
ou praia (e ninguém quer pagar pedágio, quando os há). Quase exaurido, o Estado ainda deve ser responsável por prover a sociedade, inclusive a classe alta mimada.
Há séculos se sabe que os representantes do Estado de fato também
empregam as instituições de governo para seus fins particulares e, não
raro, para oprimir setores sociais.
Mas no Brasil do chilique liberalóide
e da morte do pensamento político,
o Estado é a pura e permanente encarnação do mal, um monstro independente, em absoluto desconectado de pressões sociais. Por outro lado, é o provedor universal. É sempre culpado pela "sociedade", também
tida como miticamente una, sem divisões, pela imperfeição do mundo.
Essa mesma "sociedade", ou setores
sociais, vive em apatia política, tomada pelo desejo ambivalente de
servidão e de rapina, de se aninhar
no colo do grande pai protetor e de
também violentá-lo.
vinit@uol.com.br
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