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São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 2003

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ANATOMIA DE UMA DEMISSÃO

Entre reuniões e telefonemas, empresa levou duas semanas para decidir futuro de 650 operários

Ex-comunista coordenou os cortes na GM

André Sarmento/Folha Imagem
O advogado e diretor-executivo de pessoal da General Motors, Paulo Francisco Moreira, na unidade da montadora em São Caetano do Sul (SP), onde trabalha



Moreira disse à mulher que talvez já tivesse chegado a hora de vestir o pijama e escrever um livro de ficção

No caminho até a GM, ele pensou nos dois filhos. Tiago, 23, formado em marketing, está desempregado



GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

Há dois sábados, o advogado Paulo Francisco Moreira, 59, foi com sua mulher, a artista plástica Maria Helena, 51, para a chácara do casal em Santo Antônio do Pinhal, próximo a São Paulo, uma rotina que os dois mantêm há muitos anos. Naquele dia, nada de amigos no sítio. Paulo chamou a mulher para tomar cerveja e comer batata frita - "a melhor do mundo", segundo ele- num bar em Gonçalves, a 40 minutos da chácara. Depois de uns poucos copos de cervejas e muitos sacos de batata frita, Paulo Moreira disse à mulher que talvez já tivesse chegado a hora de vestir o pijama para dedicar-se ao sonho de escrever um livro de ficção.
Paulo Moreira, ex-militante comunista quando estudante de direito em Taubaté, kardecista por convicção e leitor de Agatha Christie, é o diretor-executivo de pessoal da General Motors do Brasil. Na terça-feira, dia 22, foi ele quem disparou o processo para a GM demitir 450 pessoas na fábrica de São José dos Campos, local onde ele próprio trabalhou -era diretor de pessoal da unidade- até seis anos atrás, quando foi guindado ao atual cargo.
A decisão da GM de demitir os 450 funcionários acabou sendo revista na quinta-feira passada, depois de um acordo com o sindicato dos metalúrgicos, mas, até que tivesse sido tomada, um longo o processo de negociação foi vivido pela empresa.
A demissão é sempre o último recurso utilizado pelas empresas para tentar equilibrar suas finanças em momentos de acentuada queda de receita. Na GM, não foi diferente. A empresa iniciou o ano com a previsão de que o setor automobilístico como um todo poderia vender 1,65 milhão de carros para o mercado interno, um aumento de 5% em relação ao 1,56 milhão do ano passado.
Nos primeiros meses, logo ficou claro para a GM que essas previsões não se cumpririam. De 1,65 milhão, o número encolheu para 1,55 milhão, logo depois para 1,5 milhão, 1,4 milhão e, agora, já se fala em 1,3 milhão de veículos a serem vendidos no mercado interno. "O tempo de duração dos carros nos estoques aumentava cada vez mais", diz José Carlos Pinheiro Neto, 57, vice-presidente da GM do Brasil.
Nas tradicionais reuniões de diretoria na sede da montadora, em São Caetano do Sul, um prédio histórico do início da década de 30, quando a empresa se instalou no país, há 78 anos, começaram a ser tomadas medidas de emergência. A empresa passou a autorizar cada vez mais descontos, bônus, redução dos juros cobrados pelo Banco GM, feirões, e o mercado não reagia. Mesmo o reajuste anual de 12% no preço dos automóveis pode ser considerado tímido diante dos aumentos nos últimos 12 meses, superiores a 70%.
Com as perdas se acumulando, a empresa, depois de ter tentado todo tipo de incentivo nas vendas, partiu para os cortes preventivos. As suas fábricas de São Caetano do Sul e de São José dos Campos entraram em férias coletivas e ainda foi implantado um PDV, o conhecido programa de demissões voluntárias, recurso utilizado por empresas para reduzir o número de funcionários. A fábrica de Gravataí, no Rio Grande do Sul, entra hoje em férias coletivas.
No dia 8 de julho, uma terça-feira, véspera de feriado em São Paulo, numa reunião de diretoria marcada na "administration room", como é chamada a principal sala de reuniões da empresa, para fazer uma avaliação do mercado, chegou-se à conclusão fatal. As tentativas da empresa para reativar as vendas não foram suficientes. O mercado não reagiu.
A reunião foi aberta com uma longa exposição de Ademar Nicolini, 57, diretor de planejamento de manufatura e responsável por toda a produção da empresa. Depois de mostrar o comportamento da produção de carros naquele ano, ele apresentou o diagnóstico. A empresa tinha um enorme excedente, não só de 650 funcionários como também das peças produzidas por eles.
Coube ao presidente da GM do Brasil, Walter Wieland, 60, argentino de família alemã em sua segunda passagem pelo Brasil, bater o martelo. Os 12 diretores do comitê executivo apoiaram a decisão. A empresa iria partir para os cortes. No linguajar da empresa, quando acontece isso, se diz que cortam-se os pneus e as pessoas.
Wieland conhece bem o Brasil. Ele assumiu a presidência em julho de 2000, mas já tinha trabalhado na GM do Brasil, como diretor de marketing, entre os anos de 1986 e 1989, quando aprendeu a falar português-ele também fala alemão, inglês e espanhol. Workahoolic, Wieland, advogado formado na Universidade de Buenos Aires, é daqueles executivos que gosta muito pouco de aparecer publicamente. O seu dia-a-dia é voltado para o trabalho interno da empresa. Nos fins de semana, Wieland joga golfe em São Paulo.
Depois de Wieland definir, na reunião, os próximos passos da empresa, foi a vez de Pinheiro Neto falar. Ele chamou a atenção para o fato de que havia esperança de haver uma melhora no mercado neste ano. Entre os argumentos, citou a perspectiva de redução dos juros pelo Banco Central e as negociações que estão ocorrendo entre as montadoras e o governo para adotar incentivos fiscais como forma de impulsionar as vendas de automóveis. Entre outras funções, Pinheiro Neto é quem cuida, na GM, dos contatos com autoridades.
Com a esperança vaticinada por Pinheiro Neto, Paulo Moreira propôs então que a empresa, em vez de demitir, tentasse negociar com o sindicato a adoção do sistema de "lay-off" (afastamento temporário do trabalho) por cinco meses. Nesse período, as pessoas a serem cortadas preservariam seus empregos e receberiam 80% dos salários sem ir trabalhar.
Antes de aprovar a proposta de Paulo Moreira, Wieland quis saber se haveria chance de o sindicato aceitá-la. Se o sindicato não aceitasse a proposta de "lay-off", o desgaste da empresa poderia ser maior do que a demissão.
Paulo Moreira deixou a sala de reuniões por instantes e foi consultar Fernando Garcia, 40, o negociador da empresa com o sindicato. Garcia considerava difícil o sindicato aceitar o "lay-off", mas disse que iria tentar convencê-lo. Moreira voltou à sala e ali foi autorizado por Wieland a tentar o "lay-off". A demissão passou a ser o Plano B. Wieland concedeu, no entanto, um prazo até 18 de julho para conseguir emplacar o Plano A -ou seja, o "lay-off".
Moreira e Fernando Garcia deram início ao processo. Garcia passou a negociar diariamente com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Luiz Carlos Prates, o Mancha, 47, funcionário da GM há 15 anos e ligado ao PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), considerado a esquerda da esquerda no país. Garcia sabia que iria encontrar muitas dificuldades na negociação.
Ao mesmo tempo, Paulo Moreira começou, com seu pessoal, a preparar a lista dos 650 a serem afastados. A elaboração de uma lista de pessoas a serem cortadas é sempre uma operação complexa numa empresa. São muitos os fatores envolvidos na escolha daqueles que serão sacrificados. Numa fábrica de 8.000 funcionários, como é o caso da unidade da GM de São José dos Campos, sempre existe a possibilidade de serem cometidos enganos.
Paulo Moreira diz que o desempenho dos funcionários é apenas um dos aspectos a serem considerados. Mesmo assim, ele chama a atenção para o fato de que muitas vezes o superior hierárquico dos funcionários pode estar equivocado quando escolhe as pessoas a serem cortadas em suas áreas.
Os nomes são submetidos aos departamentos de assistência social e de assistência médica da empresa. As duas áreas remetem para o departamento pessoal a ficha de cada uma das pessoas.
O objetivo de Paulo Moreira é evitar não só injustiças como também a possibilidade de a empresa enfrentar futuros processos trabalhistas por demitir funcionários com doenças graves, como câncer ou Aids. Também evita-se demitir funcionários que estejam prestes a serem pais ou que tenham casos de doença na família.
Ainda assim, o departamento pessoal da GM monta mesas de atendimento no momento das demissões. Há sempre a possibilidade de o funcionário relatar um problema que não era do conhecimento nem do assistente social nem do médico.
Na terça-feira passada, dia 22, quando se dariam os cortes, Paulo Moreira, há 29 anos na GM, chegou ao trabalho às 7h, como sempre. No caminho de sua casa até a GM, conta, ele pensou muito nos seus dois filhos. Tiago, de 23, formado em marketing na Universidade de Taubaté, está desempregado, e Gray, de 25, trabalha numa fornecedora da GM que não foi poupada de cortes de material já decididos pela montadora.
Moreira lembrou-se também do tempo de estudante, quando, em 1963, apanhou da polícia em manifestações na praça da Sé ou quando fugiu do Dops pela brecha do sino de uma igreja numa reunião clandestina.
O prazo determinado por Wieland para efetuar os cortes na empresa já havia encerrado na sexta-feira. Ele tinha conseguido esticá-lo até terça-feira. Ao chegar à sua sala pela manhã na GM, ele ligou para o Mancha para saber se o sindicato tinha, afinal, topado a proposta de "lay-off". Mancha teria pedido mais tempo. Mas não havia mais tempo.
Moreira pediu, então, a Fernando Garcia, o negociador, que ligasse para Rogério Oliveira, 50, o diretor de pessoal da fábrica de São José dos Campos, a fim de que disparasse o plano B.
As 650 cartas de demissão já estavam prontas. Por volta do meio-dia, Oliveira deu ordem à fábrica de São José dos Campos para que cessasse totalmente a produção. No chão da fábrica, foi lido um comunicado que informava que, devido ao momento difícil que atravessa a economia do país, a empresa teria de fazer um corte de pessoal. Em seguida, os superintendentes começaram a entregar as cartas de demissão. Quando faltavam 200 cartas a serem entregues, a GM decidiu suspender o processo, pois o sindicato aceitou discutir o "lay-off". Na quinta-feira, em assembléia com os trabalhadores, o sindicato aprovou a proposta do "lay-off", e a GM desistiu das demissões.


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