São Paulo, quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

A aliança Brasil-Índia

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

 A meu pai

A visita do presidente da República à Índia foi um passo importante no desdobramento da política externa do governo brasileiro. Nesse terreno, o governo Lula tem demonstrado eficácia e capacidade de inovar -em contraste marcado, diga-se de passagem, com o que se vê em outras áreas do governo, nas quais prevalecem até agora ou o amadorismo e a improvisação ou a adesão acovardada a preceitos econômicos tradicionais.
Digito essa frase e paro. Não quero desancar a ortodoxia de galinheiro outra vez. Voltemos à Índia. Descontados os arroubos retóricos, normais em discursos presidenciais, Lula tem razão em frisar o caráter estratégico da parceria com a Índia. Ela constitui um dos principais elementos de uma política que busca fortalecer os laços econômicos e políticos com diferentes regiões do mundo, intensificar as relações Sul-Sul e atuar em conjunto com outros países em desenvolvimento para tornar os organismos internacionais mais representativos e mais independentes dos países desenvolvidos.
Em outros tempos, essa orientação seria estigmatizada como "terceiro-mundista". Hoje, são poucos os que tentam fazê-lo. O Brasil está superando a mistura de temor reverencial e deslumbramento beócio em relação ao Primeiro Mundo, inaugurada no governo Collor e mantida, no essencial, no período Fernando Henrique Cardoso.
Na nova política externa, as nossas relações econômicas e políticas com a América do Sul e outros grandes países da periferia do sistema internacional, como a Índia, a China, a África do Sul e a Rússia, adquirem uma importância especial. Essas relações já possuem peso econômico expressivo e podem crescer consideravelmente. Em 2003, a Argentina foi o segundo maior mercado para as exportações brasileiras; a China, o terceiro.
Não se trata obviamente de deixar em segundo plano as relações com os países desenvolvidos. Basta lembrar que os países da União Européia e os Estados Unidos responderam em 2003 por 25% e 23% das nossas exportações de mercadorias, respectivamente. O que se pretende é diversificar ainda mais a estrutura geográfica do comércio exterior brasileiro e usar as alianças com outros países em desenvolvimento, especialmente os de grande porte, para fazer valer os nossos interesses em negociações como as da OMC, da Alca e outras.
As relações com a Índia ainda são modestas. O comércio bilateral mal ultrapassou US$ 1 bilhão no ano passado. Mas o potencial de expansão é inegável. A economia da Índia vem crescendo em ritmo muito expressivo e a do Brasil não vai (espero) ficar estagnada para sempre. Além disso, durante a visita de Lula, foram assinadas as diretrizes para um acordo de preferências tarifárias entre o Mercosul e a Índia. Esse acordo poderá ser concluído ainda neste ano; está sendo anunciado como primeiro passo para a negociação de uma área de livre comércio.
A dimensão bilateral talvez não seja a mais importante no nosso relacionamento com a Índia. Os indianos têm forte tradição de atuação independente nos organismos multilaterais. Nos anos 80, antes da derrocada que começou no final do governo Sarney e continuou nos governos seguintes, o Brasil e a Índia formaram uma importante aliança no Gatt (o antecessor da OMC), com o intuito de impedir que a rodada Uruguai beneficiasse de modo desproporcional os países desenvolvidos, contemplando temas do seu interesse e excluindo os de interesse de países em desenvolvimento. A defecção do Brasil, que acabou cedendo às pressões dos EUA e de outros países desenvolvidos, deixou a Índia praticamente isolada. Isso contribuiu para que os resultados finais da Rodada Uruguai, que desembocou na criação da OMC, fossem basicamente desfavoráveis para os países em desenvolvimento.
Agora, a aliança com a Índia está sendo retomada. Na reunião da OMC, em Cancún, em setembro último, um dos fatos mais importantes foi a atuação conjunta do Brasil não só com a Índia mas com um grupo de mais de 20 países em desenvolvimento, que incluiu a Argentina, a China, a África do Sul, o Egito e a Indonésia. A ação desse grupo conseguiu frustrar a tentativa da União Européia e dos EUA de limitar drasticamente as concessões na área agrícola, reeditando manobra realizada no final da rodada Uruguai.
O potencial dessa aliança de países em desenvolvimento está longe de esgotado. O grupo continuará atuando nas próximas reuniões da OMC. E o presidente Lula anunciou, na Índia, que devem ser lançadas em junho próximo, na reunião da Unctad em São Paulo, as bases para um novo sistema de preferências comerciais entre países em desenvolvimento.
Não posso deixar de mencionar meu pai, o embaixador Paulo Nogueira Batista. Primeiro porque a sua iniciativa foi essencial no lançamento do sistema de preferências comerciais entre países em desenvolvimento no âmbito da Unctad, nos anos 80, como lembrou o embaixador Rubens Ricupero, atual secretário-geral da entidade, em artigo publicado recentemente na Folha. Segundo porque ele foi um dos arquitetos da aliança com a Índia durante a rodada Uruguai. A sua atuação nessas negociações em Genebra é lembrada até hoje.
Ele faz muita falta. Digo isso não só como filho mas como brasileiro. Com que entusiasmo ele estaria assistindo e discutindo, talvez participando desse esforço de retomada e aprimoramento das melhores tradições da política externa brasileira!


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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