São Paulo, terça-feira, 29 de maio de 2007

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VINICIUS TORRES FREIRE

A Justiça carnavalizada do Brasil


Estamento dos "alguéns" não sofre condenações: ganha estigmas no justiçamento social e mundano, se tanto

EXISTE NO PAÍS uma Justiça especial para o estamento dos políticos, dos altos burocratas, dos mais ricos, dos notórios, das celebridades e, enfim, daqueles que "conhecem alguém" -não vale conhecer um "zé ninguém". Temos, na prática, um conceito avacalhado de fidalguia, típico de um país em que a mobilidade social, embora muito restrita, é intensa; em que o favor ainda é norma e o Estado é grande e despoliciado o bastante para prover muito agrado. Essa comunidade de gente de prestígio, com aura midiática, política e econômica, tem foro privilegiado de Justiça.
Não se trata aqui da instituição formal e também deplorável dos tribunais especiais, das imunidades e de conselhos administrativos para julgar os rolos de grande empresa e bancos, além do direito de cadeia diferenciada para bacharéis, por exemplo. O foro privilegiado é o da paródia da Justiça que vemos em CPIs, shows de algemas, prisões temporárias e "denúncias", das quais raramente enxergamos resultados práticos. Criamos uma instituição informal de Justiça, o tribunal carnavalizado.
A carnavalização da Justiça pode ser apreciada com mais clareza durante os "escândalos", em especial os políticos, naqueles momentos de transe moral e de expiação ritualística de CPIs. O país em parte gosta do justiçamento social e novelesco, praticado por meio de vazamento de processos, das arapongagens, da lavagem inconseqüente de roupa suja.
O país não apenas gosta disso como essa é a forma que restou para conter um tico da rapina do Estado, pois os tribunais de fato não funcionam.
A figura pública que se torna objeto de "denúncias" nem bem é absolvida nem condenada à cana dura. Na Justiça do estamento de "alguéns", arranha-se o prestígio, a fama e, como decorrência ocasional, retira-se parcela do poder e dos rendimentos que em geral estão associados a esses atributos. A punição dos "alguéns" é apenas um estigma. Tal mácula se enfrenta com galhardia mais ou menos cínica. Incapacita o "joão alguém" de forma provisória e atenuada, o condena a uma vida mais sorrateira ou a uma atuação pública mais escamoteada. Essa é a "pena" dos "alguéns": pairar no limbo dos "envolvidos" nisso ou naquilo, um ostracismo moral, político ou mundano que pode durar semanas ou anos. Essa é a Justiça real do Brasil do estamento, não a dos manuais.
Nos paroxismos de indignação é recorrente a farsa da refundação, da "limpeza ética", das reformas políticas, da indignação com as ameaças ao "Estado de Direito" (que quase inexiste). É a hora do transe salvacionista, de surtos pequeno-burgueses pela "ética na política", tão irrelevantes como aqueles "movimentos pela paz" que se sucedem a chacinas e ao trucidamento de cidadãos por bandidos comuns, criminosos policiais, milícias privadas legais e esquadrões da morte.
A Justiça carnavalizada é uma instituição típica de um país em que as leis "pegam" ou "não pegam". Como resposta, além da reação dramática, novelesca, sentimental, as providências sugeridas ou mesmo adotadas, são formalistas: leis "duras" e reformas institucionais que logo são adaptadas pelo estamento bandalho para servir à próxima onda de rapina e ruína dos direitos de cidadania.

vinit@uol.com.br


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