São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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LUÍS NASSIF

Vendedores de elixir

Como se narrou em outras colunas, no início do Plano Real havia um enorme volume de capital que saiu ilegalmente do país nos períodos anteriores. O grande negócio da época seria encontrar formas de reciclar esse dinheiro, trazendo-o como se fosse capital externo e aplicando nas taxas de juros internas. Leitores escrevem pedindo mais explicações sobre como a teoria econômica foi utilizada para permitir o aparecimento dessa indústria dos fundos agressivos.
Para um país acumular poupança, precisa cortar o consumo. Para que haja poupança sem redução do consumo, apela-se ao capital externo. Diz a teoria que, para abrir espaço a esse capital externo, o país é obrigado a criar um déficit nas transações correntes (fluxo de dólares com o exterior). Isso porque o excesso de dólares provoca uma apreciação no câmbio, dificultando as exportações. O que os pais do Real diziam é que o déficit era fundamental para atrair a poupança externa, que supriria a interna e permitiria financiar o desenvolvimento.
Em um trabalho de 1999, o insuspeito (porque ortodoxo, professor da PUC-RJ e competente) economista Dionísio Carneiro já constatava que, na maioria absoluta dos países analisados, o investimento externo (mesmo quando investimento real) provoca o chamado "efeito-substituição". A um financiamento em dólar que uma empresa consegue corresponde uma redução equivalente da oferta de crédito em moeda local.
Com a valorização cambial do Real, o escancaramento às exportações e o equilíbrio externo destruído, o Banco Central tinha dois caminhos. Se corrigisse o câmbio, o capital externo não seria mais essencial, e os juros poderiam cair. Se não corrigisse, haveria a necessidade de juros cada vez mais elevados, para atrair dólares especulativos que fechassem a conta.
Não se corrigiu, por receio da reação do "mercado" -que, àquela altura, promovia o terrorismo cotidiano de volta da inflação ou de fuga cambial, a qualquer sinal de mudança de câmbio- e porque a maior parte dos teóricos desse modelo era associada ou mais tarde se associou aos grupos que ganhavam com essa arbitragem de juros.
Até 1999, a grande empresa (nacional ou multinacional) era beneficiária secundária desse modelo, porque tinha acesso ao capital barato dos dólares. Só em janeiro de 1999, quando o câmbio explodiu, deram-se conta de que de nada adiantava ganhar na tesouraria se o modelo liquidava com seu negócio principal, ao comprometer o crescimento do país. Se o país vai mal, o capital especulativo ganha (porque, quanto pior a situação, mais altos os juros), mas empresas perdem.
Ainda vai levar algum tempo, mas é inexorável que os clichês sejam desmistificados e a opinião pública -principalmente a grande mídia, que perdeu com esse modelo- perceba que os grandes gurus financeiros da década nada tinham de contemporâneos: eram tão velhos e manhosos quanto os vendedores de elixir do Velho Oeste.

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