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LUÍS NASSIF
Raphael e Diamandu
Era noite de Natal ou Ano Novo,
não me lembro. Tinha voltado do
interior e estava em casa quando
o telefone tocou. Do outro lado da
linha, o choro convulsivo de um
homem. Levou algum tempo para
identificar a voz de Pelão, amigo,
produtor musical, que tinha acabado de chegar do Rio de Janeiro.
Dois dias antes recebera telefonema desesperado do violonista
Raphael Rabello e foi passar a
noite de festas com o amigo. No
apartamento, apenas os dois e o
violão que Raphael pegava no colo e alisava, como se alisa a um filho. "Agora que eu sei de tudo sobre ele, que aprendi tudo, me
acontece essa." "Essa o quê?", perguntou Pelão, já tomado pela intuição da grande tragédia. "Estou
com Aids."
A sensação que Pelão teve, que
me transmitiu, que transmiti ao
Aluizio Maranhão, violonista,
que transmitiu ao Dagô, pandeirista, que transmitiu ao Nelsinho,
cavaquinho, que transmitiu ao
Almeida, ritmista, foi de um murro na boca do estômago. Nosso
grupo de choro sentiu a orfandade que, alguns anos depois, morto
Raphael, os chorões do Brasil inteiro sentiram. Estávamos prestes
a ficar órfãos de um quase menino, o maior violonista brasileiro
da atualidade, o jovem que Tom
Jobim e Radamés Gnatalli tratavam por gênio e que prometia se
transformar no maior da história.
Anos antes, o táxi que transportava Raphael sofreu abalroamento. O braço ficou muito machucado, obrigando a transfusões de
sangue contaminado, o mesmo
veneno que matou Henfil, Betinho e tantos outros.
Passei a noite sem dormir, lembrando Raphael.
Com 14 anos, com um violão
maior que ele, foi parar com seu
grupo Os Carioquinhas no Bar do
Alemão. Sentou, perguntou que
música iríamos tocar. Nelsinho
Risada, nosso cavaquinho e mestre, olhou com certo ar de molecagem paternal e lascou: "Feia", de
Jacob do Bandolim, um monumento de valsa complexa. Raphael perguntou: "Em que tom?".
Aos primeiros acordes, Nelsinho, que trazia na carteira um recorte de jornal de 1954, com a notícia da morte de Garoto (o músico que revolucionou o violão, o
bandolim e o cavaquinho brasileiros), matou a charada: "Fiquem quietos todos, que temos
um gênio nos visitando".
Olimpo do choro
Só os adeptos do choro podem
entender como se forma a mitologia nesse universo, o rigor com
que os chorões constituem seu firmamento de deuses, arcanjos e
querubins, criam sua história
oral. Quase nada transita pela
cultura erudita ou acadêmica, pelos jornais e grandes veículos de
mídia. Tudo se transmite por
pautas, partituras, instrumentos
musicais, fitas com gravações históricas e histórias, histórias e histórias, circulando avidamente pela confraria. Nesse universo, havia muitos anos Raphael era absoluto.
No dia seguinte, liguei para o
Pelão para pensarmos maneiras
de, pelo menos, registrar seus últimos anos, o que foi possível graças
à sensibilidade de Ricardo Gribel,
vice-presidente do Banco Real,
que patrocinou um grande show
no Tom Brasil.
Esse trabalho me permitiu abrigar, por algumas noites, o Olimpo
da música brasileira. Quando Raphael veio se hospedar em casa,
trouxe junto consigo todos os seus
predecessores, na forma de histórias que coletou junto a Baden,
mestre da atual geração de violonistas, Meira, mestre de Baden, e
Radamés, mestre de todos. Falava
de Pixinguinha e Pernambuco, de
Kaximbinho e Luiz Americano,
de Rogério Guimarães, de Tom
Jobim e Nazareth, com a familiaridade de quem rompeu com as
camadas do tempo e juntasse todos em uma festa intemporal. E
falava muito da nova constelação
que se formava, com uma generosidade incomum em músicos
-raça frágil e competitiva, como
todos os criadores. Alertou-me
para a genialidade do bandolim
de Armandinho ("Bicho, perto
dele até eu sou japonês"), da clarineta de Paulo Sérgio e do violão
de Ulisses Rocha. E falou de uma
fita que gravou com Gal Costa
que acabou perdida em alguma
gaveta, por zangas do coração.
Durante algum tempo, nossa casa se transformou em uma espécie
de refúgio de Raphael. Mas a angústia trazida pela doença era
mais forte. Nos shows, perdia-se
num ritmo alucinado, de quem
está correndo atrás do tempo.
Certa vez, num estúdio onde gravava músicas de Dilermando
Reis, me puxou de lado pedindo
socorro, um asilo em um lugar
qualquer do interior. Outra vez,
no bar "Vou Vivendo", me quis
pai, como queria a Pelão.
O último encontro com ele foi
em um restaurante paulistano,
em um jantar logo após um show
que fez no Sesc Pompéia com Paulo Moura. Apareceu com Ana Luiza, de banho tomado, com a fisionomia tranquila, como se tivesse
redescoberto a paz. Só depois me
contaram que, durante o show,
precisou fazer uma pausa atrás de
algo que o acalmasse.
Sua morte, algumas semanas
depois, me pegou em um ponto
qualquer do triângulo mineiro,
mas ainda a tempo de escrever algumas linhas. Depois, a cada aniversário de sua morte, prometia a
mim mesmo contar um pouco de
nossa convivência, mas o bloqueio era enorme.
Tomei coragem depois que ouvi
o menino gaúcho Diamandu Costa, 18, moleque como Raphael, tocar com Armandinho no show dos
190 anos do Banco do Brasil. A
mesma mão gorducha, o mesmo
ritmo frenético, a mesma alegria e
capacidade de improvisação, a
mesma molecagem com as notas,
a mesma genialidade.
Aí constatei mais uma vez que
Deus não é brasileiro. Mas é adepto incondicional da nossa música.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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