São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

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VIZINHOS

Alinhamento Caracas/Brasília/Buenos Aires, chamado de "eixo do bem" por Darc Costa, ex-BNDES, tem esvaziamento

Lula perde liderança do eixo sul-americano para Chávez

Jorge Adorno - 19.abr.2006/Reuters
Os presidentes Tabaré Vázquez, do Uruguai (esq.), Hugo Chávez, Nicanor Duarte, do Paraguai, e Evo Morales em encontro no Paraguai

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Um eixo Caracas/Brasília/Buenos Aires, a ser estruturado em torno do mega-gasoduto que iria de Puerto Ordaz (Venezuela) ao rio da Prata (Argentina), passando pelo Brasil, não é exatamente uma idéia nova.
Em 2004, quando o BNDES era chefiado por Carlos Lessa, então o nicho nacionalista do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente do banco, Darc Costa, sonhava com o que chamava de "eixo do bem", e dizia à Folha:
"Se houver o alinhamento Caracas/Brasília/Buenos Aires, o resto da América do Sul cai por gravidade".
A novidade nessa história está dada pelo presidente que agora toma a iniciativa de reapresentar, com uma roupagem mais concreta ou mais megalomaníaca, segundo os críticos, o eixo supostamente do bem. Chama-se Hugo Chávez Frias, preside a Venezuela, e não o Brasil.
Na prática, o principal resultado da série de reuniões desta semana entre mandatários sul-americanos foi a consolidação de uma mudança de líderes: sai Lula, obscurecido pelo conservadorismo de seu governo e pela relativa paralisia provocada pelos sucessivos escândalos, e entra Chávez.
Mas é bom qualificar a liderança: na prática, trata-se apenas da liderança das vozes dissonantes em relação ao modelo dito neoliberal que foi absolutamente hegemônico nos anos 1990 e princípios do novo século.
A liderança regional será sempre do Brasil, com qualquer presidente, pelo tamanho do país, de sua população e de sua economia.
No máximo, disputando com o México, que, no entanto, é dependente demais dos Estados Unidos para voar por conta própria, ainda que as eleições de julho sejam vencidas por Andrés Manuel Lopez Obrador, o mais esquerdista dos candidatos principais.
A ascensão de Chávez já ficara evidente no fim do ano passado, durante a Cúpula das Américas, em Mar del Plata (Argentina).
Foi o único presidente a ter um pé em cada lado do perímetro de segurança, sempre montado nessas ocasiões. Ficou do lado protegido, mas falou também, em estádio de futebol, aos inimigos do modelo neoliberal e da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Lula fez papel discretíssimo, do lado de dentro e zero do lado de fora.
A multidão de ONGs que participou da contra-cúpula deixou claro que, embora ainda mantivesse alguma expectativa em relação a Lula, já deslocara suas fichas para Chávez.
Mas a comparação entre as reuniões desta semana e Mar del Plata joga contra a retórica integracionista de Chávez.
Em São Paulo, Chávez disse, após o encontro com Lula e o argentino Néstor Kirchner, que eles eram os "três mosqueteiros".
Já seria um lugar comum se a imagem fosse usada pela primeira vez. Mas era a segunda, com um problema adicional: em Mar del Plata, os "mosqueteiros", sempre segundo Chávez, eram cinco (aos três de São Paulo somavam-se, então, os presidentes do Uruguai e do Paraguai).
Tudo porque os quatro do Mercosul e mais Chávez fecharam posição contra a proposta norte-americana, mas vocalizada pelo México, de retomar as negociações da Alca em abril (de 2006). Proposta apoiada pelos outros 29 países das Américas.
Já em São Paulo, os dois sócios menores do Mercosul estavam ausentes, irritados pelo que consideram descaso dos dois grandes (Argentina e Brasil) para com eles. No caso do Uruguai, mais que irritação havia fúria por causa da resistência argentina em aceitar a instalação de duas fábricas de celulose na divisa entre os dois países.
Não é apenas pelas baixas no grupo dos "mosqueteiros" que se mede a imensa dificuldade para compor o "eixo do bem" inicialmente antevisto pelo BNDES de Lula e, agora, comandado por Chávez.
Há o fato de que um quarto "mosqueteiro" potencial, o boliviano Evo Morales, entrou em rota de colisão com o Brasil, em torno não só da siderúrgica EBX, virtualmente expulsa do país, mas também em torno do papel da Petrobras no país vizinho.
Não é um conflito simples, a julgar pelo que diz Francisco Fernández Buey, boliviano que leciona Filosofia na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona) em artigo para "El País".
"É a primeira vez na história da América Latina em que são abordados conjunta e simultaneamente -e, ademais, do ponto de vista dos de baixo- os dois grandes problemas [do país]: o problema econômico e social (marcado pelas desigualdades e pela existência de importantes faixas de pobreza) e o problema nacional, ou seja, a articulação alternativa, com critérios igualitários e solidários, das diferenças lingüísticas, culturais e étnicas."
É uma alusão ao suposto uso dos recursos naturais para um projeto de desenvolvimento mais igualitário e a uma Constituinte para tentar atender os reclamos da região de Santa Cruz de la Sierra (menos indígena e mestiça) por mais autonomia, sem perder a unidade nacional.
Posto de outra forma, Morales não está interessado no eixo com Caracas/Brasília/Buenos Aires, mas no seu próprio eixo interno, étnico, territorial e social.
Joga contra também a relativa solidão dos agora "três mosqueteiros". Enquanto o governo brasileiro insistia em que a crise das papeleiras fosse resolvida no âmbito bilateral e, portanto, regional, Kirchner dizia a jornalistas argentinos que já em maio leva o caso à Corte Internacional de Haia -sinal de que os "mosqueteiros" de Mar del Plata precisam de fontes externas para resolver suas pendências.
Mais: enquanto o Brasil pensa na Comunidade Sul-Americana de Nações, que reuniria todos os países sul-americanos, inclusive as Guianas, como uma soma dos vários blocos já existentes, Chávez dinamitava um dos blocos, a CAN (Comunidade Andina de Nações), porque Colômbia e Peru preferiram o "eixo" com o Norte (os Estados Unidos) ao eixo do Sul, ainda um sonho -ou um pesadelo, conforme os críticos da diplomacia brasileira, cada vez mais numerosos e estridentes.


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