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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A batalha de Itararé

RUBENS RICUPERO

A terrível batalha da Alca em Miami foi como a de Itararé, na Revolução de 30: não houve. Para os leitores mais moços do que eu -e devem ser quase todos-, lembro que Itararé, na divisa do Paraná e São Paulo, era o ponto em que deveriam se encontrar as forças legalistas, que desciam do norte, com as colunas de Getúlio Vargas, que subiam do sul. Lá haveria de ferir-se, conforme anunciavam os jornais, a "maior batalha campal da América do Sul". Sucede, contudo, que, aqui como alhures, os militares preferem conversar a guerrear. Como já tinham feito na Proclamação da República e voltariam a fazer em 1964, mediram as tropas e os canhões, parlamentaram e entenderam-se para depor Washington Luiz.
Na Flórida, passou-se exatamente o mesmo. Nem o Brasil nem os EUA estavam interessados em briga. Nessas situações, o melhor é fechar o acordo possível, ainda que minimalista, proclamar vitória e salvarem-se todos. Ficam amuados, chupando o dedo, os que gostariam de ver sangue -o dos outros- entre eles, os nossos belicosos patrícios, que andaram a atiçar fogo nas colunas da imprensa.
A verdade é que a precariedade da economia mundial, as eleições americanas e o ingresso na União Européia de dez novos membros interessados em manter subsídios agrícolas deixam pouco espaço, a curto prazo, para avanços expressivos no comércio. As negociações comerciais, tanto as da OMC (Organização Mundial do Comércio), em Genebra, como as da Alca, têm prazo de conclusão em 1º de janeiro de 2005.
Descontadas as férias de fim de ano, isso significa que, no essencial, o acordo tem de ser alcançado entre meados e dois terços de 2004, isto é, entre julho e outubro, justo o momento quando esquenta a campanha para as eleições nos EUA, fixadas para a primeira semana de novembro. Os pragmáticos calculistas da Casa Branca já estão roendo as unhas devido aos estragos causados pelos atentados diários no Iraque. A última coisa de que precisam, neste momento, é um arranca-rabo com os sindicatos e os Democratas a propósito das perdas de emprego ocasionadas pelos acordos comerciais.
É por essas e outras que temos de nos convencer de que a salvação do comércio exterior brasileiro não virá apenas ou sobretudo da Alca e da OMC. Não só porque os produtos nos quais se concentra nossa competitividade -aço, açúcar, suco de laranja, etanol, carnes- estarão entre os últimos a serem liberalizados. Disso se encarregarão lobbies poderosos e cínicos como a aguerrida bancada da Flórida, impermeáveis às seduções e charme dos nossos agronegociantes.
O erro de atribuir importância excessiva às negociações provém justamente de que o Brasil enfrenta, no comércio, certos problemas que negociação nenhuma pode resolver. Esse é o caso da oferta pouco diversificada, de fraca competitividade nos produtos dinâmicos e do alto custo de transação, oriundo de dispendiosa e deficiente infra-estrutura de transporte, portos, serviços de apoio às exportações.
Deveríamos aprender da China, de Taiwan, que até ontem nem eram membros da OMC, dos demais asiáticos, que se tornaram os campeões mundiais de exportações, sem jamais terem tido o benefício de favores, preferências tarifárias ou acordos de livre comércio com os EUA. Isso não impediu que, no ano passado, os chineses tivessem com os americanos saldo bilateral de comércio do espantoso nível de US$ 102 bilhões, bem acima do total das exportações brasileiras, que, pela primeira vez, ultrapassam US$ 70 bilhões, graças a esforço heróico. Nada mal para país que, 20 anos atrás, exportava pequena fração do que vendia o Brasil.
Como foi que a China logrou essa meta? Não foi obviamente tentando vender ao mercado ianque suco de laranja, açúcar e produtos quejandos, que aquele mercado não quer importar. Foi vendendo manufaturas leves, artigos industriais de consumo, muitos dos quais as empresas americanas deixaram de produzir nos EUA e passaram a fabricar na China. Os chineses não esperaram o resultado das negociações para expandir e diversificar sua oferta exportável. Astutos observadores do cenário internacional, não são de dar murro em ponta de faca. Estudam os obstáculos para contorná-los, produzem e exportam na área em que identificam a linha de menor resistência.
É claro que, para isso, é preciso crescer a taxas altas, não necessariamente a 7% ou 9%, como a China, cuja taxa de investimento alcança quase 40% do PIB! No extremo oposto, não há como resolver a equação se a taxa de investimento fica abaixo dos 18%, como no Brasil. Entre esses dois extremos, temos de encontrar equilíbrio razoável que nos permita retomar gradualmente os investimentos para expandir e diversificar as exportações.
Um bom ponto de partida, que não depende nem das potências externas nem da melhoria das condições macroeconômicas internas, é o das reformas para desburocratizar a alfândega, as exportações em geral, a mudança do sistema tributário e o gargalo das ineficiências portuárias. Só assim deixaremos de temer no futuro batalhas comerciais, de Itararé ou para valer.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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