São Paulo, Sábado, 31 de Julho de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

E o piloto? Sumiu?

JOSEF BARAT

O bloqueio dos caminhoneiros nas principais estradas de rodagem do país nesta semana nos induz a uma série de reflexões. Primeiramente, cabe reconhecer que a pauta de reivindicações apresentada pelos líderes do movimento é bastante coerente e deve ser encarada com respeito, até por se tratar de setor essencial ao cotidiano do país. Em seguida, deve-se considerar que greves de caminhoneiros ocorrem em diversos países e causam enormes prejuízos de ordem econômica e social, como aconteceu recentemente na França.
Claro que não se pode deixar de condenar os excessos de arbitrariedades cometidos pelos grevistas nem deixar de lamentar as graves consequências acarretadas pelo movimento. Mas é importante, neste momento, ter consciência do contexto em que os fatos ocorrem.
Uma greve de caminhoneiros na França causa transtornos, mas a movimentação de cargas neste país -apesar do grande avanço do transporte rodoviário- divide-se de forma equilibrada com as ferrovias e a navegação interior, que, apesar de mais especializada, tem um importante papel de transporte de carga geral, por meio de contêineres. Os transtornos causados acabam por afetar muito mais a circulação de automóveis e parte da distribuição de carga nos centros urbanos.
No Brasil, entretanto, o transporte rodoviário é responsável por cerca de 70% da movimentação interurbana de cargas e 95% da de passageiros. Aqui, a paralisação dos caminhões atinge em cheio as cadeias logísticas, causando efeitos devastadores sobre a produção, o abastecimento interno e as exportações. Apesar de se saber de tudo isso, a greve -há algum tempo anunciada- deparou-se com um governo abúlico, incapaz de antecipar soluções.
Isso porque o governo não dispõe de uma política de transportes consistente. Como na língua portuguesa não existe a distinção entre "policy" e "politics", acaba por haver uma perniciosa confusão sob a égide da palavra "política". Ou seja, entre nós, ministros fazem política ("politics") -e como fazem!-, mas, mesmo em países onde prevalecem ideologias liberais, com a primazia do mercado, os governos não abrem mão de sua função de definir políticas ("policies") e de dispor de instrumentos para intervir em situações que podem causar graves prejuízos à sociedade. Assim, a paralisação dos caminhões nos mostra alguns aspectos interessantes da absoluta falta de articulação no setor.
Os caminhoneiros reclamam dos custos elevados num contexto de demanda em declínio pela recessão. Reclamam, sobretudo, do aumento dos preços dos combustíveis, das tarifas dos pedágios e do vergonhoso estado de conservação das estradas, o que eleva, sem dúvida, o chamado "custo Brasil". O governo federal é responsável por cerca de 53 mil km de rodovias pavimentadas. Foram privatizados por meio de concessões apenas 850 km, que concentram parte relevante do tráfego rodoviário e tiveram melhoria sensível nas suas condições de tráfego. Mas o restante da malha viária não dispõe dos recursos necessários para sua conservação rotineira e restauração de trechos degradados. Estimativas recentes mostram que apenas 38% da malha federal pavimentada encontra-se em boas condições e 62% está em estado regular ou péssimo.
No passado havia um mecanismo de financiamento auto-sustentado -o Fundo Rodoviário Nacional-, baseado na arrecadação do imposto sobre combustíveis e lubrificantes, vinculado à infra-estrutura rodoviária. Com o fim das vinculações e a transferência da base tributária para os Estados, a União perdeu receitas e manteve encargos. Se entre 1970 e 1974 o governo federal investiu o equivalente a 0,90% do PIB em construção e pavimentação e 0,30% em conservação, entre 1995 e 1998 os percentuais caíram para, respectivamente, 0,07% e 0,05%.
Há mais de uma década que se assiste à degradação do patrimônio viário, sem que: i) se transfira parte da malha federal para os Estados; ii) se crie um mecanismo de financiamento sustentado no longo prazo para dar suporte pelo menos à conservação e à restauração da malha existente. O Brasil já dispôs de um mecanismo que deu certo, extinto sem uma alternativa.
A outra questão relevante que decorre da falta de política para o setor é a da persistência no predomínio do caminhão. Onde estão as ferrovias e a navegação de cabotagem com alternativas para cargas gerais unificadas em contêineres? A privatização da malha ferroviária gerou dois problemas com as concessionárias, que: i) não conseguiram cumprir as metas estabelecidas e ii) acomodaram-se à situação de transformar as ferrovias em meros centros de custos dos seus negócios (minérios, produtos siderúrgicos etc.). Quanto à navegação de cabotagem, a privatização de áreas portuárias e a própria legislação, não desfizeram o emaranhado de instâncias burocráticas e irracionalidades nas operações portuárias. Ora, custos elevados, altos índices de furtos e avarias e tempos de espera absurdos afugentam a carga do navio, se ela tiver a opção do caminhão.
Este é o pior dos mundos em que vivemos. Sem estratégias e políticas públicas arrojadas e consistentes, as coisas certamente vão piorar. Em prejuízo do abastecimento interno e da competitividade das exportações. Nessa greve anunciada, o país, já devagar, quase parando, correu o sério risco de parar. Nuvens carregadas, turbulências, o avião com dificuldade de nivelar, os passageiros apertam os cintos e o piloto... sumiu! Vamos levar mais a sério a questão dos transportes, senhores!


Josef Barat, 59, economista, é membro do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e autor do livro "A Evolução dos Transportes no Brasil".
E-mail: barat@sanet.com.br
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