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MICHAEL KEPP mkepp@terra.com.br

Coragem ou outra coisa?

Muita gente acha que o suicídio é um ato de covardia, mas marcar a hora da chegada da morte requer audácia

A palavra "coragem" define comportamentos tão radicalmente dessemelhantes, cada um com seu próprio motivo, que prefiro razões mais precisas para aquilo que é visto como ato de bravura.

O sentimento que leva um soldado a resgatar companheiros feridos é o amor fraterno e sacrifical que os une e põe o bem-estar de um "irmão" à frente do seu próprio. Só que esses soldados recebem medalhas não pelo amor, mas pela coragem, uma virtude livre de ambiguidade.

Bombeiros que salvam pessoas das chamas e ativistas que protestam contra regimes repressores -como o chinês que desafiou tanques de guerra na praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989- encaram riscos semelhantes por amor sacrifical, nesses casos, pela humanidade.

É o que também faz uma pessoa que decide morrer numa greve de fome em defesa de uma causa.

Alguns veem qualquer outra forma de suicídio, mesmo quando cometido para acabar com sofrimento físico ou psicológico insuportável, como "ato de covardia". Isso porque as grandes religiões condenam o suicídio.

Outros acham o suicídio um ato de coragem, porque, como a maioria das pessoas teme a morte, marcar a hora da chegada dela requer audácia. Para mim, o suicídio é um tiro de misericórdia que nasce do desespero. Você não odeia a vida, mas um trauma o impede de amá-la.

Alguns dizem que é preciso coragem para mudar comportamentos autodestrutivos ou o rumo de sua vida. Para mim, o desespero também move essas decisões. Uma dose pesada disso -eu não aguentava mais a cultura americana do "tempo é dinheiro"- explica porque me mudei para este país que nunca tinha visitado. E o desespero criativo me levou a escrever crônicas e protagonizar uma peça baseada nelas.

Uma pessoa que faz seu primeiro voo de asa-delta ou mergulha com tubarões também é descrita como corajosa. Para mim, porém, ela calcula que as vantagens de tais "saltos" -o senso de triunfo, a injeção de adrenalina, o drama- pesam mais que os riscos.

Ladrões espertos fazem a mesma análise de custo-benefício. Uma vez, uma desconhecida tocou a campainha sabendo que só a empregada estava em casa. Disse que era amiga de minha mulher e pediu para aguardar o retorno dela. Enquanto a empregada estava na cozinha, a estranha roubou as joias de minha esposa. "Que coragem!", falou minha nora ao ouvir a história. "Coragem?", disse minha mulher. "Que cara de pau!".

MICHAEL KEPP, jornalista americano radicado há 29 anos no Brasil, é autor de "Tropeços nos Trópicos - crônicas de um gringo brasileiro" (Record) www.michaelkepp.com.br

NA PRÓXIMA SEMANA

Mirian Goldenberg

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