São Paulo, quinta-feira, 01 de fevereiro de 2007
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Outras idéias - Wilson Jacob Filho

Por que não?

Neste período falamos, mesmo que por telefone, com aqueles que não encontramos há algum tempo. Assim ocorreu com uma tia-avó, muito querida, que invariavelmente me liga para expressar seus votos para o novo ano. Após perguntar pelos "seus" e responder pelos "meus", veio o inevitável -falar do seu estado de saúde-, seguido de sutis "o que você acha?".
Nada de incomum, depois que nos habituamos a ter respostas que não preocupem o interlocutor e que, por outro lado, não o assustem com a óbvia constatação: profissionais têm diferentes pontos de vista e soluções para a mesma situação. Uma questão, porém, costuma despertar a minha indignação e me obriga a uma resposta mais detalhada. Trata-se do famigerado "por que não?".
Assim ocorreu quando minha tia contou ter recebido de um médico, muito amigo de sua nora, um grande frasco de medicamento com a recomendação de tomá-lo diariamente. Conheço o produto e sei que é recomendado exclusivamente para os portadores da doença de Alzheimer. Arrisquei o clássico "por qual motivo foi recomendado?", e a resposta foi pronta e conclusiva: "Se o remédio é bom para a memória, e eu não estou contente com a minha, por que não?".
Minha tia faz tudo sozinha. Cuida de si e da casa com a mesma maestria desde que a conheço. Seu incomparável bolo de fubá continua o mesmo. Evidentemente, comete pequenos deslizes cotidianos, que nada comprometem seu desempenho. Mesmo assim, estava tomando um medicamento recomendado para os portadores de uma grave enfermidade. Com todo carinho e cuidado, expliquei-lhe por que o remédio é desnecessário e, principalmente, seus possíveis efeitos indesejáveis. Após segundos de silêncio, ela comentou: "Então pode ser a causa de o meu intestino voltar a ficar preso, obrigando-me a retomar os laxativos".
Combinamos que ela não tomaria mais o medicamento até uma completa avaliação do médico com quem se trata há anos e prometemos nos encontrar mais no ano que se inicia. Mesmo sem que ela saiba, aproveitei nosso diálogo para reiterar uma convicção que há muito venho defendendo. Na tomada de decisões, a pergunta correta é "por que sim?", e as justificativas devem demonstrar que os benefícios esperados são muito superiores aos riscos daquela intervenção.
O "por que não?" pressupõe que aquela ação, caso não faça bem, também não fará mal e é especialmente utilizado para explicar o uso de vitaminas ou de fitoterápicos. Isso é falso na quase totalidade das vezes. Não há atitude isenta de risco. Ao desligar o telefone, fiquei certo de que minha tia se tornou mais saudável sem a medicação desnecessária. E creio que a convenci a refazer suas consultas de rotina, apesar de "não estar sentindo nada".
O melhor é que fui convidado para o bolo de fubá com o café "da hora" que me reporta à infância longínqua. Obviamente, uma oportunidade como essa tem todos os motivos para justificar um "por que sim?".


WILSON JACOB FILHO , professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br

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