São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2008
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Em busca da palavra perdida

IARA BIDERMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

F altam palavras para Lucas Roberto Rojas Rodrigues, 23, descrever o que lhe aconteceu há três anos. A ausência de verbos, adjetivos, substantivos e sinônimos não é figura de linguagem no seu caso. Foi a própria linguagem que Lucas perdeu e está reencontrando aos poucos. Ele ainda busca palavras perdidas e nem sempre as encontra, mas já conversa e pode contar como, aos 20 anos, forçando seu limite para levantar um pouco mais de peso na academia, perdeu a fala e a sensibilidade nos membros do lado direito do corpo.
Ele não tinha idéia do que acontecia. "Pensei que ia morrer." Súbita e inesperadamente, o então estudante do segundo ano de engenharia, aparentemente em boa forma física, teve um AVC (acidente vascular cerebral), popularmente conhecido como derrame. Uma das conseqüências do evento foi a afasia -perda ou déficit da linguagem. "Eu não conseguia falar nem escrever nada", conta.
Lucas iniciou um tratamento de fonoaudiologia para recuperar a fala. Além da terapia em consultório, há um ano acrescentou mais uma atividade ao seu programa de reabilitação: o teatro.
A idéia de usar as artes cênicas na recuperação da linguagem surgiu quando a fonoaudióloga Fernanda Papaterra, especialista em afasia pela Universidade de Dakota do Norte (EUA), assistiu, em um congresso em Montreal (Canadá), a uma apresentação do grupo "Le Thêatre Aphasique", criado em 1992 pela fonoaudióloga e atriz canadense Anne-Marie Théroux.
Em 2002, Papaterra fundou, em São Paulo, a ONG Ser em Cena, voltada à reabilitação e à integração social de portadores de distúrbios de comunicação. Os instrumentos para atingir esses objetivos são montagens, ensaios e apresentações teatrais, auxiliados por técnicas da fonoaudiologia.
Para isso, contou a dupla experiência de outro fundador da ONG, o mímico e clown Nicholas Wahba, que, além da formação teatral, é ex-afásico. Wahba se divide entre o palco e a assistência de direção, auxiliando o diretor-executivo, Saliba Filho, a ensaiar a trupe de artistas amadores, alguns de poucas palavras, mas todos com muito garra.
"Palavras. Palavras. Palavras. Preciso de uma palavra", repete, firme, o advogado Mario Francisco Catarino, 67. Mario, que teve um AVC aos 60 anos e chegou a receber o veredicto de que nunca mais iria falar, está no grupo desde a sua fundação. A frase faz parte do jogral, um dos esquetes de "Reconstruindo a Palavra", o primeiro espetáculo do Ser em Cena, que já foi apresentado no teatro Bibi Ferreira e na Uniban (Universidade Bandeirante), em São Paulo. Na continuação do esquete, outro participante dá a deixa: "O que nos aconteceu?" Em uníssono, a resposta -"nós perdemos a palavra"-, seguida pelas falas alternadas dos atores amadores, portadores de diferentes graus de afasia: "Mas não perdemos a garra"; "a vida"; "a força".
Foi com muita força de vontade que o ex-vendedor José Madeira Lourenço, 75, batalhou para recuperar a capacidade de linguagem. Extremamente comunicativo em suas expressões faciais e corporais, no papel de um garçom em cena de outra peça montada pelo grupo, "Humor na Ponta do Lápis", Zé Madeira, como é chamado, ficou sem falar nada após o AVC que sofreu em 2002. Ele conta que o acidente não deixou nenhuma conseqüência motora. "A única coisa que me falta é a fala."
Para recuperá-la, ele buscou auxilio de uma fonoaudióloga. Há dois anos, faz parte da trupe, que ensaia todas as quartas-feiras de manhã na sede da ONG, no bairro paulistano da Água Branca. Além desse grupo, composto na maioria por "veteranos", um outro grupo de teatro de afásicos da ONG se reúne às sextas-feiras no Sesc Consolação (SP). A participação é aberta a todo portador de afasia -na maior parte dos casos, ela é decorrente do AVC, mas também há participantes com déficit de linguagem por outras causas, como traumatismos cranianos.
As atividades teatrais são gratuitas, mas quem pode dá uma contribuição mensal. Como o projeto do Ser em Cena foi aprovado para se enquadrar na Lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo à Cultura, que permite aos patrocinadores abatimento no Imposto de Renda), a ONG espera também conseguir patrocínio para o próximo espetáculo, com estréia prevista para o final deste ano.


Informações:
www.seremcena.org.br
Tel: 0/XX/11/3801-8166



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