São Paulo, quinta-feira, 03 de agosto de 2006
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outras idéias

A inconveniência

Michael Kepp

A crença de que os americanos têm uma vida mais fácil e confortável do que os brasileiros, graças a todas as suas conveniências, é uma fantasia.
A melhor medida de quão fácil é a vida em qualquer lugar é o esforço que se faz para mantê-la. Em uma cultura hipercompetitiva, os americanos podem ter um certo estilo de vida -mas não necessariamente uma vida- trabalhando longas horas. Apesar de render eletrodomésticos que economizam tempo, o trabalho os esgota de tempo e energia para usá-los.
Os americanos compram cortadores de grama motorizados, lava-louças, secadoras de roupa e até aspiradores de pó robotizados para fazer o trabalho de casa. Por quê? A mão-de-obra americana é tão cara que a maioria dos casais não pode ter empregada mais de uma vez por semana. E a dificuldade de fazer o trabalho de casa depois de um longo dia explica por que suas casas são tão sujas. Suas ruas e calçadas imaculadas são uma fachada enganosa.
No Brasil, é o contrário. Um descaso total pela praça pública a enche de carros e de imundície. Mas as casas são pequenos templos assépticos. Por quê? Além de terem uma boa higiene doméstica, muitos brasileiros de classe média podem pagar por empregadas e babás para cuidar da casa e das crianças. E eles moram em pequenos apartamentos urbanos, mais fáceis de limpar do que as grandes casas dos subúrbios americanos.
Um brasileiro nessas condições também pode contratar biscateiros para fazer melhorias, de pintura a reformas. Para aqueles que, como eu, odeiam trabalho manual, isso é muito conveniente. Esses trabalhos são tão caros nos EUA que os americanos têm de fazer suas próprias melhorias. Por isso, florescem as lojas gigantescas que vendem ferramentas, materiais, DVDs e manuais.
Uma outra fantasia: os serviços que economizam tempo também tornam a vida mais fácil nos EUA. Se isso é verdade, por que serviços similares não economizam tempo aqui? A fila da loja de conveniência 24 horas perto da minha casa é tão longa à noite, nos fins de semana, que uma compra pode levar 15 minutos. Alguns McDonald's com "drive-thru" têm uma fila tão grande que é mais rápido estacionar e pegar seu pedido dentro do restaurante.
O comércio americano oferece tanta escolha que decidir cria estresse e desperdiça tempo. No Brasil, escolhas mais limitadas economizam tempo e não criam estresse. A mão-de-obra mais barata torna a vida mais fácil para os brasileiros que puderem pagar. Esses profissionais trabalham menos horas do que a maioria dos americanos. E seus salários pagam pelo trabalho doméstico que eles não têm tempo de fazer porque estão trabalhando.
Muito conveniente.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 24 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br


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