São Paulo, quinta-feira, 03 de dezembro de 2009
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[+]CORRIDA

Rodolfo Lucena

Balanço das dores

Chego dolorido e um tanto machucado ao final deste ano da graça de 2009.
As provas enfrentadas foram mais duras e complicadas do que o meu corpo estava preparado para aguentar.
Cada maratona deste ano teve uma complexidade especial, um risco específico que desafiei sem pensar muito, com a presunção de quem acha que vai chegar, seja do jeito que for. É um erro comum, uma certa arrogância que nos acomete a toda hora na vida e nos faz levar as coisas no vai-da-valsa, mesmo sabendo que cada dia é diferente do outro e que o que fizemos ontem pode não dar certo hoje ou amanhã...
E assim a gente vai seguindo, recebendo algumas porradas, mas tocando o barco.
No asfalto e no barro, ao longo deste ano, saí inteiro das provas corridas, mas cada uma delas deixou sua marca.
Lesões, inflamações, dores, cansaço, irritação e medo, muito medo. Depois de uma corrida em trilha, cheia de descidas arriscadas, num terreno sempre irregular -algo totalmente não recomendado para um sujeito com hérnias em penca e "ites" sem conta-, o joelho chiou como nunca fizera antes ao longo de minha curta, mas movimentada carreira de corredor.
Foram dias de apavorada expectativa até a chegada do laudo da ressonância magnética e do veredito do médico dizendo que ia passar e que eu poderia continuar correndo sem entrar na faca.
O alívio durou pouco, coisa de um mês, se tanto. Logo outro osso reclamou, agora no pé, entortando minha corrida. Dessa vez, o médico pareceu ficar mais preocupado, o que me levou mesmo ao pânico, crente de que faltava apenas a comprovação da imagem para me colocar na mesa de cirurgia.
Nada. Só mais uma "ite" para atravancar o meu caminho. Essas inflamações doem bastante, é verdade, mas o pior delas é que nos deixam tristes e até fazem aflorar sentimentos menos nobres que a gente pensava não abrigar: quantas vezes fiquei com inveja, até raiva, ao ver gente correndo nas ruas e nos parques, enquanto eu devia apenas trotar...
São mais adversários a enfrentar. Meio torto, às vezes até trôpego, continuo correndo. Talvez por isso a inflamação dure um pouco mais ou mesmo nunca fique completamente curada. Azar. Cada corredor (cada vivente) sabe: a alternativa -não correr- é ainda mais perniciosa. Abre portas para o desânimo, inflama a irritação, convida ao descaminho.
Mas não dá para se acostumar com a dor, aceitá-la, conviver com ela. Não. A dor é um aviso. Fizemos algo errado, estamos fazendo algo errado; se não agirmos rápido, a coisa pode ficar pior.
Maltratado, o corpo sofre, se encolhe, se retrai, subtrai, trai. Atendido, responde, reage, revive, floresce.
Do balanço das dores e dos machucados, há que tentar tirar sabedoria e coragem para continuar tentando, fazer tudo de novo ainda outra vez.
E, olhando o calendário da maratona da vida, perguntar logo, cheio de inquieta esperança: qual é a próxima?


RODOLFO LUCENA , 52, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record) e de "+Corrida" (Publifolha)

rodolfolucena.folha@uol.com.br

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