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[+]CORRIDA
Rodolfo Lucena
Balanço das dores
Chego dolorido e um
tanto machucado
ao final deste ano
da graça de 2009.
As provas enfrentadas foram
mais duras e complicadas do
que o meu corpo estava preparado para aguentar.
Cada maratona deste ano
teve uma complexidade especial, um risco específico
que desafiei sem pensar muito, com a presunção de quem
acha que vai chegar, seja do
jeito que for. É um erro comum, uma certa arrogância
que nos acomete a toda hora
na vida e nos faz levar as coisas no vai-da-valsa, mesmo
sabendo que cada dia é diferente do outro e que o que fizemos ontem pode não dar
certo hoje ou amanhã...
E assim a gente vai seguindo, recebendo algumas porradas, mas tocando o barco.
No asfalto e no barro, ao longo deste ano, saí inteiro das
provas corridas, mas cada
uma delas deixou sua marca.
Lesões, inflamações, dores, cansaço, irritação e medo, muito medo. Depois de
uma corrida em trilha, cheia
de descidas arriscadas, num
terreno sempre irregular
-algo totalmente não recomendado para um sujeito
com hérnias em penca e
"ites" sem conta-, o joelho
chiou como nunca fizera antes ao longo de minha curta,
mas movimentada carreira
de corredor.
Foram dias de apavorada
expectativa até a chegada do
laudo da ressonância magnética e do veredito do médico
dizendo que ia passar e que
eu poderia continuar correndo sem entrar na faca.
O alívio durou pouco, coisa
de um mês, se tanto. Logo
outro osso reclamou, agora
no pé, entortando minha
corrida. Dessa vez, o médico
pareceu ficar mais preocupado, o que me levou mesmo ao
pânico, crente de que faltava
apenas a comprovação da
imagem para me colocar na
mesa de cirurgia.
Nada. Só mais uma "ite"
para atravancar o meu caminho. Essas inflamações
doem bastante, é verdade,
mas o pior delas é que nos
deixam tristes e até fazem
aflorar sentimentos menos
nobres que a gente pensava
não abrigar: quantas vezes fiquei com inveja, até raiva, ao
ver gente correndo nas ruas e
nos parques, enquanto eu
devia apenas trotar...
São mais adversários a enfrentar. Meio torto, às vezes
até trôpego, continuo correndo. Talvez por isso a inflamação dure um pouco mais
ou mesmo nunca fique completamente curada. Azar. Cada corredor (cada vivente)
sabe: a alternativa -não correr- é ainda mais perniciosa. Abre portas para o desânimo, inflama a irritação, convida ao descaminho.
Mas não dá para se acostumar com a dor, aceitá-la,
conviver com ela. Não. A dor
é um aviso. Fizemos algo errado, estamos fazendo algo
errado; se não agirmos rápido, a coisa pode ficar pior.
Maltratado, o corpo sofre,
se encolhe, se retrai, subtrai,
trai. Atendido, responde,
reage, revive, floresce.
Do balanço das dores e dos
machucados, há que tentar
tirar sabedoria e coragem para continuar tentando, fazer
tudo de novo ainda outra vez.
E, olhando o calendário da
maratona da vida, perguntar
logo, cheio de inquieta esperança: qual é a próxima?
RODOLFO LUCENA , 52, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de
"Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record) e de "+Corrida" (Publifolha)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
bit.ly/blogdorodolfo
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