São Paulo, terça-feira, 06 de julho de 2010
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Esse filme dá uma vida

A loucura das telas virou objeto de estudo e terapia; veja transtornos clássicos do cinema e escolha seu tipo

JULLIANE SILVEIRA
DE SÃO PAULO

A loucura é a expressão em grande escala de características mentais existentes em todo ser humano. E a tela de cinema parece exacerbar ainda mais o que já é exagero por natureza.
O interesse coletivo é compreensível: como existem mais de 150 tipos diferentes de doenças mentais, é provável que a maiora das pessoas tenha um conhecido com problemas ou sofra de um.
Por isso, abordar os transtornos da mente em filmes favorece muita gente: desde o cineasta, que atrai mais público, até o espectador, que se envolve com o roteiro.
Mais recentemente, psiquiatras, psicólogos e pacientes buscam entender melhor os distúrbios mentais com a ajuda do cinema.
É o que propõe a cinematerapia, uma das mais novas ferramentas usadas por especialistas para ajudar o paciente em seu processo de autoconhecimento.
No Brasil, alguns psiquiatras e psicólogos já recorrem a histórias de transtornos mentais como ponto de partida para que o doente ou algum familiar compreenda melhor o problema.
Para quem sofre com a dificuldade de se relacionar ou de se comunicar, por exemplo, alguns personagens podem ainda servir de modelo.
Nesse caso, o filme nem precisa abordar uma doença específica ou o problema do paciente.
Ele assiste à história e, com o terapeuta, tenta alterar seu comportamento usando soluções apresentadas pelos personagens.
"Ajuda na sessão, para o paciente expressar melhor as próprias emoções. Também pode ajudar em casa, quando há problemas de diálogo entre os familiares, por exemplo", explica o psiquiatra Vitor Hugo Sambati Oliva, que pesquisa cinema e psiquiatria na Faculdade de Medicina da USP.
Oliva publicará na próxima edição da "Revista de Psiquiatria Clínica" o primeiro artigo brasileiro sobre estudos já realizados com a cinematerapia. Os resultados encontrados são positivos.
Conectar os estudos da mente com a abordagem do cinema é tendência no país. Em diversas regiões do Brasil, ocorrem palestras e outras formas de discussão que reúnem filmes, cineastas e algum médico ou psicólogo.
O Instituto de Psiquiatria da USP, por exemplo, planeja para o segundo semestre mostras de filmes para leigos, para abordar problemas mentais. A primeira, ainda sem data definida, pretende discutir o autismo.
Para Oliva, o interesse não vem só de doentes e seus familiares. "A arte instiga a pessoa a uma reflexão e a ajuda a se conhecer melhor, independentemente de ter um transtorno mental."

LOUCA FICÇÃO
O livro "Cinema e Loucura" (ed. Artmed; R$ 79) foi lançado em junho no Brasil. A ideia é usar a produção cinematográfica nacional e estrangeira para ajudar leigos e especialistas a compreender melhor as manifestações dos transtornos mentais.
A publicação reúne informações sobre mais de 180 filmes, analisados do ponto de vista da psicologia.
Os personagens foram avaliados pelo psiquiatra Elie Cheniaux, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e pelo psicólogo J. Landeira-Fernandez, diretor do núcleo de neuropsicologia clínica e experimental da PUC do Rio de Janeiro.
Há análises de personagens emblemáticos, como os do clássico "Um Estranho no Ninho". Filmes mais inusitados também estão presentes. Da animação "Procurando Nemo", por exemplo, é escolhida a personagem Dory, que sofre de amnésia.
Os autores apontam o diagnóstico dos personagens, com explicação detalhada dos sintomas de cada distúrbio encontrado.
"Não é por acaso que existem tantos filmes com transtornos mentais. O louco torna o filme mais interessante. Ao mesmo tempo que atrai, há aquele medo de enlouquecer ou de ser atingido por um louco incontrolável", analisa Cheniaux.
O uso de filmes como referências para estudo também tem se tornado cada vez mais frequente.
Universitários buscam discutir em sala de aula o perfil dos falsos pacientes para entender melhor os transtornos. Há alguns anos, a "Revista Internacional de Psicanálise" inclui a análise de um filme em cada publicação.
"Dá para mostrar também como alguns quadros psicopatológicos relatados no cinema não convergem com a realidade. Muitas vezes é mostrado um sujeito maluco, agressivo. Em muitos casos, o cinema tenta passar uma imagem errada do senso comum", argumenta Landeira-Fernandez.

FALSOS PROBLEMAS
O uso do imaginário coletivo para montar os personagens também pode estimular estereótipos ruins dos transtornos mentais.
"Se você pega os "serial killers", vê que são parte de um cinema industrial, que usa esses monstros para vender. A loucura aparece para assustar mesmo, para reforçar medos", analisa o psicanalista Sérgio Telles, coordenador do grupo de psicanálise e cultura do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.
No livro brasileiro, esses personagens estão no capítulo chamado de "Loucuras mal resolvidas" -com transtornos inventados para criar um enredo mais interessante. É o que ocorre com "Clube da Luta" e "12 Macacos".
Mas ninguém quer cobrar do cinema uma verossimilhança que não lhe cabe.
"Os filmes prestam um excelente serviço de entrenenimento, e a gente pega carona nisso como ferramenta de estudo", pondera Fernandez.
Para ele, os filmes não conseguiriam se sustentar somente com transtornos reais. "A realidade do distúrbio mental é crua, não tem nada de legal. Mas é um dos ingredientes mais usados porque supreende, sai do padrão", acrescenta.


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