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nutrição
Reação adversa
Pesquisas buscam vacina contra alergias alimentares, que atingem menos pessoas do que diz o senso comum: de 6% a 8% das crianças e de 1% a 2% dos adultos
FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL
N
a despensa da casa
dos gêmeos Pedro e
Juliano Genaro Keller, não há nem
sombra de leite de vaca. Apesar
de eles terem três anos, idade
em que a maioria das crianças
consome a bebida diariamente,
o ingrediente foi cortado da lista de compras da família desde
que, ainda bebês, eles começaram a apresentar urticárias e
cólicas ao tomar um preparado
à base desse tipo de leite.
O diagnóstico de alergia alimentar veio logo depois. Diferentemente da intolerância alimentar, na qual os pacientes
agüentam pequenas quantidades do ingrediente e principalmente de seus derivados, a
orientação para os alérgicos é
mais radical: é preciso banir o
ingrediente que faz mal.
"Para descomplicar, ninguém na família toma leite de
vaca, só de soja. Bolos, biscoitos, tudo tem que ser feito em
casa", diz a mãe dos meninos, a
arquiteta Ana Rita Keller, 35.
Hoje, como acontece em 85%
dos casos, a alergia de Pedro desapareceu e ele já tolera o alimento. Juliano não teve tanta
sorte: as reações chegam a ser
desencadeadas pelo contato
com quantidades microscópicas do alimento, como quando
sua avó tomou um sorvete de
creme e, duas horas depois, beijou-o. Até cosméticos podem
ser vilões: um dia, seu pai havia
passado um creme que continha leite e, ao tocar os meninos,
os sintomas apareceram.
De fato, diferentemente do
que muitos imaginam, as reações não ocorrem somente ao
ingerir o alimento: o contato
com a pele ou a inalação do
cheiro da comida é suficiente
para desencadear o processo
em algumas pessoas.
A mãe conta, aliviada, que
nenhum dos gêmeos chegou a
ter o chamado choque anafilático -reação mais grave da
alergia alimentar, que pode até
matar. Mas a doença mudou a
rotina da família, a começar pela compra no supermercado:
todos os rótulos, tanto de alimentos quanto de cosméticos,
passam pelo olho clínico de
Ana Rita, que reconhece até
termos técnicos que nem sempre são identificados por leigos
(veja quadro na pág. 8).
Por conta da alergia, ela resolveu esperar as crianças amadurecerem mais antes de ir para a escola. "O Juliano precisa
ter mais consciência do que
acontece com ele para detectar
uma reação e alertar as pessoas.
Crianças são curiosas, provam
o lanche da outra. Os familiares
e os amigos sabem, mas na escola é outra coisa", afirma.
Pesquisas
Cada vez mais freqüente nos
países ocidentais, a alergia alimentar é um campo ainda pouco compreendido pela ciência.
Nos últimos anos, vários pesquisadores têm se debruçado
sobre a doença para entender
suas causas e buscar um tratamento ou a cura -por enquanto, a única solução segura é cortar o alimento da dieta.
O que se sabe é que há um
forte componente genético envolvido: quando os pais apresentam alergia -de qualquer
tipo, não só a alimentos-, a
chance de o filho ter o problema aumenta. O pai de Juliano e
Pedro, por exemplo, tem rinite.
A mãe teve asma infantil e chegou a sofrer um choque anafilático por alergia a um remédio.
Também é sabido que os alimentos que causam alergia têm
algumas proteínas com características específicas. "Elas são
resistentes ao processo digestivo e chegam ao intestino bastante intactas", explica Cristina
Miuki Abe Jacob, chefe da unidade de alergia e imunologia do
Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).
O leite de vaca, presente na
nossa alimentação desde que
somos muito pequenos, é o
campeão de reação entre as
crianças. "Nessa fase, muitas
vezes o intestino não tem maturidade suficiente e deixa passar proteínas que normalmente não passariam, o que acaba
causando a reação", observa a
alergista Maria de Fátima Marcelos Fernandes, diretora da
Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia.
Segundo ela, metade dos
alérgicos a leite melhora espontaneamente até um ano de
idade e 85% até os três anos.
Ovo, soja, trigo e amendoim
também estão entre os maiores
alérgenos na infância. Os frutos
do mar e as castanhas, mais responsáveis por alergia na vida
adulta, engrossam a lista.
Em relação à busca de tratamentos, uma das linhas de pesquisa que têm trazido esperanças é a que tenta criar uma vacina recombinante. Trata-se de
modificar levemente, em laboratório, proteínas do alimento
que causa alergia. Testes mostraram que ratos que tinham
choque anafilático quando em
contato com amendoim deixaram de ter a reação após receber a proteína modificada.
A FDA (Food and Drug Administration, agência que regula alimentos e medicamentos
nos EUA) já autorizou o teste
em humanos, mas as experiências ainda não começaram.
"A substituição de apenas alguns aminoácidos [componentes das proteínas], sem modificar a estrutura do alimento, faz
com que o organismo do alérgico deixe de encarar aquela proteína como "inimiga". Então, ele
pode parar de produzir os anticorpos responsáveis pelas reações alérgicas", explica a pediatra Renata Cocco, pesquisadora
do ambulatório de alergia alimentar da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A médica participou de pesquisas com as vacinas recombinantes na Mount Sinai School
of Medicine, em Nova York.
Apesar de o foco dos cientistas
americanos ser o amendoim
-que, por ser muito consumido no país, é responsável por
várias reações graves-, Cocco
trabalhou com proteínas do leite, alérgeno mais compatível
com a realidade brasileira.
Ela afirma que esses estudos
começaram no fim dos anos 90
e que os avanços têm sido rápidos. Em quanto tempo teremos
uma vacina, e se será mesmo
por esse caminho, ainda não dá
para dizer, mas, para Cocco, é
possível que isso ocorra em menos de dez anos.
Também na Mount Sinai,
cientistas têm pesquisado o
efeito de ervas chinesas na alergia. Testes laboratoriais conseguiram inibir reações anafiláticas em cobaias -ainda não há
pesquisas com humanos.
Diferentemente das respiratórias, na alergia alimentar não
é possível aplicar a imunoterapia -quando pequenas doses
do elemento alergênico (como
os ácaros) são injetadas no paciente, fazendo com que ele adquira tolerância. Isso porque os
riscos são muito grandes, e
mesmo doses minúsculas podem gerar reações graves.
Alguns cientistas tentam trabalhar com a chamada dessensibilização oral, na qual o paciente come, de forma controlada e gradativa, pequenas
quantidades do alimento até ficar mais resistente.
Embora funcione para algumas pessoas, o risco é muito alto -a chance de ocorrerem reações graves gira em torno de
30%. O perigo aumenta pelo fato de o procedimento ser feito
por tempo prolongado. "Vários
colegas meus abandonaram essa prática há anos", diz o bioquímico brasileiro Marcos Alcocer, professor na Universidade de Nottingham (Inglaterra).
Alcocer vem investigando as
causas da alergia alimentar,
com foco nas proteínas dos alimentos. "Se entendermos o
que faz uma proteína ser reconhecida como alérgeno para alguns e não para outros, poderemos um dia atenuar a resposta
alérgica", afirma.
Diagnóstico
Enquanto 20% da população
altera sua dieta devido a reação
adversa a alimentos, apenas de
6% a 8% das crianças e de 1% a
2% dos adultos realmente têm
alergia alimentar. Ou seja, muita gente acha que tem a doença
quando tem outro problema.
"Tudo que aparece de diferente
no organismo, principalmente
manifestações cutâneas e gastrointestinais, é taxado de alergia. Isso é problemático porque
muita gente restringe alimentos da dieta sem necessidade",
diz Renata Cocco.
É muito comum, por exemplo, que a intolerância a leite
seja confundida com alergia.
No primeiro caso, o paciente
não consegue digerir um açúcar do leite, a lactose, pela falta
de uma enzima que a degrada.
Já na alergia, há um mecanismo imunológico envolvido. Como alguns sintomas são parecidos, por exemplo a presença de
diarréia, muita gente confunde.
Para reduzir as confusões em
relação ao diagnóstico e orientar os pediatras sobre a doença,
a Sociedade Brasileira de Pediatria está finalizando um
consenso sobre alergias alimentares. Previsto para março,
trata-se do primeiro documento do gênero no país.
Também é comum que as
pessoas confundam a fonte da
alergia: o chocolate, por exemplo, é muito mais culpado do
que deveria. Na verdade, o cacau não é muito alergênico. É o
leite ou são as castanhas presentes em muitos chocolates
que causam reações alérgicas.
A famosa alergia a corantes e
a conservantes também precisa
ser bem investigada. "Todo
mundo acha que tem alergia a
corante, mas isso não é tão comum quanto se pensa", afirma
Jacob. Muitas vezes, é outro ingrediente do alimento o responsável pela reação.
Para complementar a história clínica no diagnóstico, os
exames de sangue e o chamado
teste de sensibilização são os
mais usados. Neste último, extratos dos alimentos alergênicos são colocados na pele da
pessoa. O médico faz um risco
no local e, caso ela seja sensível
àquele alimento, forma-se uma
espécie de vergão.
O problema é que o fato de
dar positivo nem sempre significa que a pessoa seja alérgica. É
preciso cruzar esses dados com
o relato do paciente para ver se
ele é apenas sensível ou se tem
sintomas de reação alérgica.
Considerado atualmente o
exame mais eficaz na área, o
chamado teste de provocação
oral é oferecido em poucos centros. Nele, a pessoa ingere, na
presença do médico, pequenas
doses do alimento alergênico.
Também é oferecido outro produto semelhante, mas que não
é o alimento, para comparar os
resultados. Por envolver riscos,
esse teste só deve ser feito por
profissionais especializados e
em ambiente hospitalar.
Além de passar por um diagnóstico correto, é importante
reconhecer os sintomas e
aprender como agir numa reação grave. Uma pesquisa feita
com pais de pacientes alérgicos
do Instituto da Criança do HC
mostrou que 50% não conheciam o significado do termo
choque anafilático.
Entre os pais de crianças que
freqüentavam a escola -18, no
total-, cinco não haviam avisado a instituição sobre o risco e
os primeiros cuidados em reações graves.
As reações mais leves -em
geral manifestações gastrointestinais (como diarréias e vômitos) e dermatológicas (como
inflamações na pele)-, podem
ocorrer horas e até dias depois
do consumo do alimento.
Já os sintomas graves vêm no
máximo duas horas depois da
ingestão de alimentos. Falta de
ar, inchaço e desmaio costumam indicar choque anafilático. Nesse caso, é preciso ir correndo para o hospital. "Se tiver
dúvida [sobre ir ou não ao
pronto-socorro], vá", afirma
Renata Cocco.
Aos 16 anos, a bancária Karen
Roberta Firata, 20, teve os sintomas descritos acima cerca de
20 minutos depois de comer
um prato com camarão. "Comecei a me coçar. O corpo inchou, o rosto e a garganta também. Fui ao hospital", conta.
Um tempo depois, Karen
descobriu que tinha alergia
também a lula. "Foi minha pior
crise. Comi lula à doré num bar
e, além de ficar inchada e com
falta de ar, desmaiei", lembra.
A alergia ficou tão forte que
ela não pode nem chegar perto
dos frutos do mar. Uma vez, ela
estava na cozinha ao lado de
sua avó, que fervia camarões
em uma panela, e os sintomas
apareceram. "É incrível. Só de
sentir o cheiro comecei a me
coçar e a garganta inchou."
O mais curioso é que, até então, ela havia comido esses alimentos outras vezes sem problemas. Segundo a alergista
Maria de Fátima Fernandes, o
que acontece é que o organismo
já suscetível vai se sensibilizando à medida que a pessoa consome o alimento ao longo da vida até gerar uma reação.
Por isso, quando há casos de
alergia (não só alimentar) na
família, os médicos recomendam que os pais não ofereçam
precocemente os alimentos
mais alergênicos ao bebê. "A
prevenção começa com o aleitamento materno exclusivo,
dando tempo para que o intestino da criança amadureça e
consiga degradar bem as proteínas. O leite de vaca só deveria ser dado após um ano, e o
ovo, após dois anos", recomenda Cristina Jacob.
Ambulatório de alergia alimentar do
departamento de pediatria da Unifesp:
tels. 0/xx/11/5576-4145 e 5579-1590
Grupo de atendimento a pacientes
com alergia alimentar do Instituto
da Criança do HC/USP
tels. 0/xx/3069-8585 e 0/xx/
3069-8512
Instituto Girassol (Grupo de Apoio
a Portadores de Necessidades Nutricionais Especiais)
www.igirassol.com.br
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