São Paulo, quinta-feira, 08 de fevereiro de 2007
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nutrição

Reação adversa

Pesquisas buscam vacina contra alergias alimentares, que atingem menos pessoas do que diz o senso comum: de 6% a 8% das crianças e de 1% a 2% dos adultos

FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL

N a despensa da casa dos gêmeos Pedro e Juliano Genaro Keller, não há nem sombra de leite de vaca. Apesar de eles terem três anos, idade em que a maioria das crianças consome a bebida diariamente, o ingrediente foi cortado da lista de compras da família desde que, ainda bebês, eles começaram a apresentar urticárias e cólicas ao tomar um preparado à base desse tipo de leite.
O diagnóstico de alergia alimentar veio logo depois. Diferentemente da intolerância alimentar, na qual os pacientes agüentam pequenas quantidades do ingrediente e principalmente de seus derivados, a orientação para os alérgicos é mais radical: é preciso banir o ingrediente que faz mal.
"Para descomplicar, ninguém na família toma leite de vaca, só de soja. Bolos, biscoitos, tudo tem que ser feito em casa", diz a mãe dos meninos, a arquiteta Ana Rita Keller, 35.
Hoje, como acontece em 85% dos casos, a alergia de Pedro desapareceu e ele já tolera o alimento. Juliano não teve tanta sorte: as reações chegam a ser desencadeadas pelo contato com quantidades microscópicas do alimento, como quando sua avó tomou um sorvete de creme e, duas horas depois, beijou-o. Até cosméticos podem ser vilões: um dia, seu pai havia passado um creme que continha leite e, ao tocar os meninos, os sintomas apareceram.
De fato, diferentemente do que muitos imaginam, as reações não ocorrem somente ao ingerir o alimento: o contato com a pele ou a inalação do cheiro da comida é suficiente para desencadear o processo em algumas pessoas.
A mãe conta, aliviada, que nenhum dos gêmeos chegou a ter o chamado choque anafilático -reação mais grave da alergia alimentar, que pode até matar. Mas a doença mudou a rotina da família, a começar pela compra no supermercado: todos os rótulos, tanto de alimentos quanto de cosméticos, passam pelo olho clínico de Ana Rita, que reconhece até termos técnicos que nem sempre são identificados por leigos (veja quadro na pág. 8).
Por conta da alergia, ela resolveu esperar as crianças amadurecerem mais antes de ir para a escola. "O Juliano precisa ter mais consciência do que acontece com ele para detectar uma reação e alertar as pessoas. Crianças são curiosas, provam o lanche da outra. Os familiares e os amigos sabem, mas na escola é outra coisa", afirma.

Pesquisas
Cada vez mais freqüente nos países ocidentais, a alergia alimentar é um campo ainda pouco compreendido pela ciência. Nos últimos anos, vários pesquisadores têm se debruçado sobre a doença para entender suas causas e buscar um tratamento ou a cura -por enquanto, a única solução segura é cortar o alimento da dieta.
O que se sabe é que há um forte componente genético envolvido: quando os pais apresentam alergia -de qualquer tipo, não só a alimentos-, a chance de o filho ter o problema aumenta. O pai de Juliano e Pedro, por exemplo, tem rinite. A mãe teve asma infantil e chegou a sofrer um choque anafilático por alergia a um remédio.
Também é sabido que os alimentos que causam alergia têm algumas proteínas com características específicas. "Elas são resistentes ao processo digestivo e chegam ao intestino bastante intactas", explica Cristina Miuki Abe Jacob, chefe da unidade de alergia e imunologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).
O leite de vaca, presente na nossa alimentação desde que somos muito pequenos, é o campeão de reação entre as crianças. "Nessa fase, muitas vezes o intestino não tem maturidade suficiente e deixa passar proteínas que normalmente não passariam, o que acaba causando a reação", observa a alergista Maria de Fátima Marcelos Fernandes, diretora da Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia.
Segundo ela, metade dos alérgicos a leite melhora espontaneamente até um ano de idade e 85% até os três anos.
Ovo, soja, trigo e amendoim também estão entre os maiores alérgenos na infância. Os frutos do mar e as castanhas, mais responsáveis por alergia na vida adulta, engrossam a lista.
Em relação à busca de tratamentos, uma das linhas de pesquisa que têm trazido esperanças é a que tenta criar uma vacina recombinante. Trata-se de modificar levemente, em laboratório, proteínas do alimento que causa alergia. Testes mostraram que ratos que tinham choque anafilático quando em contato com amendoim deixaram de ter a reação após receber a proteína modificada.
A FDA (Food and Drug Administration, agência que regula alimentos e medicamentos nos EUA) já autorizou o teste em humanos, mas as experiências ainda não começaram.
"A substituição de apenas alguns aminoácidos [componentes das proteínas], sem modificar a estrutura do alimento, faz com que o organismo do alérgico deixe de encarar aquela proteína como "inimiga". Então, ele pode parar de produzir os anticorpos responsáveis pelas reações alérgicas", explica a pediatra Renata Cocco, pesquisadora do ambulatório de alergia alimentar da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A médica participou de pesquisas com as vacinas recombinantes na Mount Sinai School of Medicine, em Nova York. Apesar de o foco dos cientistas americanos ser o amendoim -que, por ser muito consumido no país, é responsável por várias reações graves-, Cocco trabalhou com proteínas do leite, alérgeno mais compatível com a realidade brasileira.
Ela afirma que esses estudos começaram no fim dos anos 90 e que os avanços têm sido rápidos. Em quanto tempo teremos uma vacina, e se será mesmo por esse caminho, ainda não dá para dizer, mas, para Cocco, é possível que isso ocorra em menos de dez anos.
Também na Mount Sinai, cientistas têm pesquisado o efeito de ervas chinesas na alergia. Testes laboratoriais conseguiram inibir reações anafiláticas em cobaias -ainda não há pesquisas com humanos.
Diferentemente das respiratórias, na alergia alimentar não é possível aplicar a imunoterapia -quando pequenas doses do elemento alergênico (como os ácaros) são injetadas no paciente, fazendo com que ele adquira tolerância. Isso porque os riscos são muito grandes, e mesmo doses minúsculas podem gerar reações graves.
Alguns cientistas tentam trabalhar com a chamada dessensibilização oral, na qual o paciente come, de forma controlada e gradativa, pequenas quantidades do alimento até ficar mais resistente.
Embora funcione para algumas pessoas, o risco é muito alto -a chance de ocorrerem reações graves gira em torno de 30%. O perigo aumenta pelo fato de o procedimento ser feito por tempo prolongado. "Vários colegas meus abandonaram essa prática há anos", diz o bioquímico brasileiro Marcos Alcocer, professor na Universidade de Nottingham (Inglaterra).
Alcocer vem investigando as causas da alergia alimentar, com foco nas proteínas dos alimentos. "Se entendermos o que faz uma proteína ser reconhecida como alérgeno para alguns e não para outros, poderemos um dia atenuar a resposta alérgica", afirma.

Diagnóstico
Enquanto 20% da população altera sua dieta devido a reação adversa a alimentos, apenas de 6% a 8% das crianças e de 1% a 2% dos adultos realmente têm alergia alimentar. Ou seja, muita gente acha que tem a doença quando tem outro problema. "Tudo que aparece de diferente no organismo, principalmente manifestações cutâneas e gastrointestinais, é taxado de alergia. Isso é problemático porque muita gente restringe alimentos da dieta sem necessidade", diz Renata Cocco.
É muito comum, por exemplo, que a intolerância a leite seja confundida com alergia. No primeiro caso, o paciente não consegue digerir um açúcar do leite, a lactose, pela falta de uma enzima que a degrada. Já na alergia, há um mecanismo imunológico envolvido. Como alguns sintomas são parecidos, por exemplo a presença de diarréia, muita gente confunde.
Para reduzir as confusões em relação ao diagnóstico e orientar os pediatras sobre a doença, a Sociedade Brasileira de Pediatria está finalizando um consenso sobre alergias alimentares. Previsto para março, trata-se do primeiro documento do gênero no país.
Também é comum que as pessoas confundam a fonte da alergia: o chocolate, por exemplo, é muito mais culpado do que deveria. Na verdade, o cacau não é muito alergênico. É o leite ou são as castanhas presentes em muitos chocolates que causam reações alérgicas.
A famosa alergia a corantes e a conservantes também precisa ser bem investigada. "Todo mundo acha que tem alergia a corante, mas isso não é tão comum quanto se pensa", afirma Jacob. Muitas vezes, é outro ingrediente do alimento o responsável pela reação.
Para complementar a história clínica no diagnóstico, os exames de sangue e o chamado teste de sensibilização são os mais usados. Neste último, extratos dos alimentos alergênicos são colocados na pele da pessoa. O médico faz um risco no local e, caso ela seja sensível àquele alimento, forma-se uma espécie de vergão.
O problema é que o fato de dar positivo nem sempre significa que a pessoa seja alérgica. É preciso cruzar esses dados com o relato do paciente para ver se ele é apenas sensível ou se tem sintomas de reação alérgica.
Considerado atualmente o exame mais eficaz na área, o chamado teste de provocação oral é oferecido em poucos centros. Nele, a pessoa ingere, na presença do médico, pequenas doses do alimento alergênico. Também é oferecido outro produto semelhante, mas que não é o alimento, para comparar os resultados. Por envolver riscos, esse teste só deve ser feito por profissionais especializados e em ambiente hospitalar.
Além de passar por um diagnóstico correto, é importante reconhecer os sintomas e aprender como agir numa reação grave. Uma pesquisa feita com pais de pacientes alérgicos do Instituto da Criança do HC mostrou que 50% não conheciam o significado do termo choque anafilático.
Entre os pais de crianças que freqüentavam a escola -18, no total-, cinco não haviam avisado a instituição sobre o risco e os primeiros cuidados em reações graves.
As reações mais leves -em geral manifestações gastrointestinais (como diarréias e vômitos) e dermatológicas (como inflamações na pele)-, podem ocorrer horas e até dias depois do consumo do alimento.
Já os sintomas graves vêm no máximo duas horas depois da ingestão de alimentos. Falta de ar, inchaço e desmaio costumam indicar choque anafilático. Nesse caso, é preciso ir correndo para o hospital. "Se tiver dúvida [sobre ir ou não ao pronto-socorro], vá", afirma Renata Cocco.
Aos 16 anos, a bancária Karen Roberta Firata, 20, teve os sintomas descritos acima cerca de 20 minutos depois de comer um prato com camarão. "Comecei a me coçar. O corpo inchou, o rosto e a garganta também. Fui ao hospital", conta.
Um tempo depois, Karen descobriu que tinha alergia também a lula. "Foi minha pior crise. Comi lula à doré num bar e, além de ficar inchada e com falta de ar, desmaiei", lembra.
A alergia ficou tão forte que ela não pode nem chegar perto dos frutos do mar. Uma vez, ela estava na cozinha ao lado de sua avó, que fervia camarões em uma panela, e os sintomas apareceram. "É incrível. Só de sentir o cheiro comecei a me coçar e a garganta inchou."
O mais curioso é que, até então, ela havia comido esses alimentos outras vezes sem problemas. Segundo a alergista Maria de Fátima Fernandes, o que acontece é que o organismo já suscetível vai se sensibilizando à medida que a pessoa consome o alimento ao longo da vida até gerar uma reação.
Por isso, quando há casos de alergia (não só alimentar) na família, os médicos recomendam que os pais não ofereçam precocemente os alimentos mais alergênicos ao bebê. "A prevenção começa com o aleitamento materno exclusivo, dando tempo para que o intestino da criança amadureça e consiga degradar bem as proteínas. O leite de vaca só deveria ser dado após um ano, e o ovo, após dois anos", recomenda Cristina Jacob.


Ambulatório de alergia alimentar do departamento de pediatria da Unifesp: tels. 0/xx/11/5576-4145 e 5579-1590

Grupo de atendimento a pacientes com alergia alimentar do Instituto da Criança do HC/USP tels. 0/xx/3069-8585 e 0/xx/ 3069-8512

Instituto Girassol (Grupo de Apoio a Portadores de Necessidades Nutricionais Especiais) www.igirassol.com.br


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