São Paulo, quinta-feira, 09 de novembro de 2006
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Outras idéias - Dulce Critelli

A intimidade destituída

"Por favor, pelo telefone, NÃO! Nem pelo celular. NÃO!!!" Já bastam os outdoors, as propagandas na TV, nos jornais e nas revistas, no cinema, nos semáforos, pelo correio... Mas me forçar a gastar meu tempo, precioso demais, ouvindo as insistentes ladainhas e pegadinhas para me constranger a comprar, a experimentar um produto e a não ser mal-educada e desligar na cara do vendedor é demais!
Respeito os operadores de telemarketing porque estão trabalhando, buscando seu sustento, como todos nós. Cumprem ordens e não são a fonte dos nossos incômodos. O problema está nas empresas e em sua falta de escrúpulos na escolha de técnicas de venda agressivas e violentadoras. Invasão de privacidade não é crime?
Pois é isso que o telemarketing faz. Invasão de privacidade, ou melhor, invasão de pessoas. Não porque exponha nossa vida particular em público, mas porque nos persegue, nos toma diretamente, desavisados e desprotegidos. A voz humana não é um mero som. Ela tem entonações, variações que irritam, comovem, intimidam... O que vem pelo telefone não entra, de fato, nas nossas casas, mas entra em nós, mexendo com nossos nervos e interferindo no nosso humor. Povoa nossa vida pessoal com assuntos com que não escolhemos nos ocupar. Usa nosso tempo de viver, sem permissão.
Balzac, Stendhal e Rousseau foram pensadores e escritores que, nos séculos 18 e 19, descobriram (tanto quanto inventaram) a "intimidade", uma região dentro de cada indivíduo, onde ele poderia ficar a sós com seus pensamentos e sentimentos, fora do alcance dos olhos e da crítica da opinião pública. E a "intimidade" era o que lhes sobrava, uma vez que o lar, reduto onde os homens poderiam, quando quisessem, resguardar sua privacidade da vida pública, também já tinha perdido esse potencial, enquadrado pelo olhar da opinião social.
Nossos tempos são os tempos de uma sociedade de massas, para a qual toda intimidade é um contra-senso e um obstáculo. E que tem, na comunicação potencializada pela informatização, sua principal ferramenta de expansão e manutenção. Vivemos sob o reinado da comunicação, que suprime toda "intimidade" e o que sempre e necessariamente a acompanha: o silêncio, a solidão, a germinação de idéias, de diferenças e de novos interesses.
Sob seu domínio, somos perseguidos, vigiados, invadidos, espionados, vasculhados. Destituídos da "intimidade", perdemos o último lugar no qual ainda poderíamos estar a salvo. Onde, agora, poderemos nos resguardar?


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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