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Outras idéias - Dulce Critelli
A intimidade destituída
"Por favor, pelo telefone, NÃO! Nem
pelo celular.
NÃO!!!" Já bastam
os outdoors, as propagandas na
TV, nos jornais e nas revistas,
no cinema, nos semáforos, pelo
correio... Mas me forçar a gastar meu tempo, precioso demais, ouvindo as insistentes ladainhas e pegadinhas para me
constranger a comprar, a experimentar um produto e a não
ser mal-educada e desligar na
cara do vendedor é demais!
Respeito os operadores de telemarketing porque estão trabalhando, buscando seu sustento, como todos nós. Cumprem ordens e não são a fonte
dos nossos incômodos. O problema está nas empresas e em
sua falta de escrúpulos na escolha de técnicas de venda agressivas e violentadoras. Invasão
de privacidade não é crime?
Pois é isso que o telemarketing faz. Invasão de privacidade, ou melhor, invasão de pessoas. Não porque exponha nossa vida particular em público,
mas porque nos persegue, nos
toma diretamente, desavisados
e desprotegidos. A voz humana
não é um mero som. Ela tem
entonações, variações que irritam, comovem, intimidam... O
que vem pelo telefone não entra, de fato, nas nossas casas,
mas entra em nós, mexendo
com nossos nervos e interferindo no nosso humor. Povoa nossa vida pessoal com assuntos
com que não escolhemos nos
ocupar. Usa nosso tempo de viver, sem permissão.
Balzac, Stendhal e Rousseau
foram pensadores e escritores
que, nos séculos 18 e 19, descobriram (tanto quanto inventaram) a "intimidade", uma região dentro de cada indivíduo,
onde ele poderia ficar a sós com
seus pensamentos e sentimentos, fora do alcance dos olhos e
da crítica da opinião pública. E
a "intimidade" era o que lhes
sobrava, uma vez que o lar, reduto onde os homens poderiam, quando quisessem, resguardar sua privacidade da vida
pública, também já tinha perdido esse potencial, enquadrado
pelo olhar da opinião social.
Nossos tempos são os tempos de uma sociedade de massas, para a qual toda intimidade
é um contra-senso e um obstáculo. E que tem, na comunicação potencializada pela informatização, sua principal ferramenta de expansão e manutenção. Vivemos sob o reinado da
comunicação, que suprime toda "intimidade" e o que sempre
e necessariamente a acompanha: o silêncio, a solidão, a germinação de idéias, de diferenças e de novos interesses.
Sob seu domínio, somos perseguidos, vigiados, invadidos,
espionados, vasculhados. Destituídos da "intimidade", perdemos o último lugar no qual
ainda poderíamos estar a salvo.
Onde, agora, poderemos nos
resguardar?
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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