São Paulo, quinta-feira, 10 de março de 2005
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Saúde

Dores nas costas, problemas no joelho e distensões musculares começam a surgir nas salas de ioga; especialistas recomendam bom senso

Prática consciente

Lia Bock
colaboração para a Folha

Ela é definitivamente pop. Nos bares, a ioga já disputa espaço com assuntos nobres como futebol, juros altos e receitas de dietas infalíveis. Nas academias, bate recorde de sala cheia. Não é novidade que os brasileiros estão de caso com essa prática milenar. Mas, como em todo relacionamento, uma hora a paixão arrefece e começam a aparecer os problemas e as dores. Nesse caso, dor física. Aos poucos, as pessoas estão percebendo que a ioga pode causar lesões em seus praticantes, exatamente como tênis, futebol, musculação e outras práticas físicas consideradas mais agressivas.
A verdade é que, ao criar raízes no Ocidente, a ioga ganhou um contorno esportivo, embora instrutores e iogues mais fervorosos resistam a chamar a prática de exercício. As pessoas trocam boxe, cooper e pesinhos pelas modalidades mais vigorosas da prática indiana -são atraídas pela filosofia e pelo benefício global. Afinal, são 5.000 anos de experiência que, ao misturar exercícios de respiração, posturas, cantos e meditação, prometem ao praticante muito mais do que um corpinho sarado.
Mas a mentalidade física em voga desvia a ioga de seu caminho histórico e abre espaço para problemas mundanos como tendinite, hérnia de disco, distensão muscular e outras lesões comuns aos esportistas.
A designer Tatiana Wessel, 28, sentiu na pele os riscos da ioga. Apaixonou-se pela modalidade ashtanga, uma das mais vigorosas, e durante um ano achou que tinha encontrado a melhor forma de se exercitar com prazer. Um dia, ela começou a sentir dor nas costas e seguiu fielmente as orientações da professora. Mas não foi suficiente. Há dois anos Tatiana briga com uma dolorida hérnia de disco. "Fiquei muito chateada de ter que largar algo de que eu gostava tanto", afirma. "De repente, aquilo que era a melhor coisa do mundo virou um sofrimento sem fim." Uma das coisas que Tatiana mais lamenta é o fato de a escola não tê-la orientado corretamente e ter se esquivado de qualquer responsabilidade, mesmo que apenas por solidariedade. "A única coisa que ouvi foi: 'É assim mesmo", diz.

Regulamentação
O boom da ioga é um fato. O polêmico Mestre De Rose, que registrou o nome da prática swástyia, já oferece em seu site 64 endereços de sua escola Uni-Yôga no Brasil. O Espaço Vidya conta com três unidades em São Paulo. O Surya, que há três anos ocupa uma casa, também em São Paulo, está de mudança para um prédio maior construído especialmente para abrigar a escola. Há ainda muita briga envolvendo a regulamentação do ensino de ioga no mundo todo. No Brasil, há um projeto de lei, ainda em discussão, e propostas do Conselho Federal de Educação Física para que todos os instrutores sejam filiados. É nesse contexto "zen-em-pé-de-guerra" que os praticantes se machucam. Muitas escolas têm sido inauguradas e isso abre espaço para que professores sem preparo dêem aula. Mesmo nas mais conceituadas, os proprietários, iogues há décadas e ótimos professores, dão lugar a aprendizes com muito menos experiência. Junta-se a isso um monte de gente interessada apenas em ficar com um corpo bonito e pronto: está formado o cenário ideal para antiinflamatórios e ressonâncias magnéticas. "Todo exercício pode ser danoso, inclusive a ioga", afirma Claudia Quintanilha Ribeiro, fisioterapeuta especialista em reeducação postural. "As posturas mexem muito com a coluna, que é o eixo do corpo e, por isso, devem ser praticadas com cuidado dobrado."
As lesões mais comuns da ioga são justamente na coluna -a lombar é a região mais atingida. É por isso que alguns instrutores não recomendam ioga para quem já sofre de algum mal, principalmente hérnia de disco (deslocamento da cartilagem localizada entre uma vértebra e outra, que deixa os ossos em atrito direto). "A região lombar é a raiz de muitos nervos, entre eles, o ciático. Toda vez que o disco se move, comprime esses nervos e causa uma dor forte", explica Moyses Cohen, ortopedista da Universidade Federal de São Paulo e especialista em medicina esportiva. Como o nervo ciático vai até o pé, a dor pode se estender pela perna e deixar a pessoa de cama até a inflamação melhorar.
A produtora de TV Fernanda Stickel, 27, só ficou sabendo disso depois que já estava na cama. Ela sofria de hérnia de disco há alguns anos e informou a professora da escola de ioga de seu problema, mas não foi orientada corretamente e fazia os exercícios sem uma atenção especial. "Havia muita gente na sala de aula, acho que a professora não tinha como cuidar de todos ao mesmo tempo. E eu, que precisava de um atendimento um pouco mais personalizado, acabei me machucando", afirma.
Para os instrutores, não há dúvida de que a ioga pode machucar. Mas cada um deles credita isso a algo diferente. Para Kalidas Nuyken, proprietário do Surya, um dos maiores problemas são os instrutores que forçam os alunos nas posturas. "É preciso respeitar o limite do aluno. Alinhar é uma coisa, forçar é outra completamente diferente", diz.


As lesões mais comuns decorrentes da prática incorreta de ioga são as da coluna; professores recomendam cuidado para quem já tem problemas


Ele conta que tem recebido muitos alunos vindos de outras escolas depois de se machucarem devido à "ajudinha" exagerada de alguns professores.
Já Shotaro Shimada, o mais antigo professor de ioga da cidade, acredita que as lesões são cada vez mais comuns porque a ioga tem perdido seu propósito e se tornado uma ginástica contorcionista. "A ioga foi fracionada e isso desequilibra a prática", afirma. "Respiração e concentração, por exemplo, são tão importantes quanto a postura, mas ninguém quer saber e por isso as pessoas se machucam." Ele conta que esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. "Na Índia, há muito charlatão e muito mais gente machucada do que aqui", conta. Para Shimada, a dor é o alarme do corpo e não deve ser encarada como parte da ioga.

Dúvidas médicas
Os médicos ainda não lidam muito bem com as lesões da ioga. Muitos não quiseram dar entrevista por não se julgarem habilitados, mesmo que a maioria afirme já ter atendido pacientes machucados nessas atividades. O problema é que, assim como muitos leigos, eles não entendem como a ioga pode machucar porque a imaginam como uma prática lenta e suave que nada tem a ver com a que se espalha por aí.
Quando informados pelos pacientes do que realmente se trata a prática da ioga, eles pedem bom senso. "É preciso muito cuidado na hora de aceitar uma mãozinha do professor. Qualquer tipo de ajuda deve sempre ser dada por um profissional devidamente habilitado, alguém que entenda muito bem do corpo e da ioga", alerta Moyses Cohen. Ele lembra que elasticidade é algo progressivo e que aumenta sozinho, com o treino.
Aos que imaginam a ioga como exercício da terceira idade, Cristóvão de Oliveira, coordenador do Centro Vidya, avisa: "A ioga é uma prática muito poderosa, principalmente a ashtanga". Ele conta que, hoje, nos Estados Unidos, há muita gente machucada. "O boom lá chegou antes do que aqui e os problemas que eles estão tendo com as lesões devem servir de aviso para nós", afirma. Para Oliveira, a maioria dos machucados vem da "prepotência e da arrogância", tanto dos instrutores mal preparados como dos alunos ambiciosos. Adepto de uma certa dose de ajuda aos alunos, Oliveira diferencia "forçar" de "abrir espaço". "A prática permite ao professor ajudar o aluno a abrir espaço no corpo, criar elasticidade", diz. "Isso dói por alguns dias, já que algumas fibras se rompem, mas é bem diferente de forçá-lo e causar uma ruptura grande de fibras, que demoram em média 90 dias para se recuperarem."
A produtora Thais Mol, 27, entendeu direitinho a diferença entre forçar e abrir espaço. Praticante de ashtanga há quatro anos, ela nunca havia se machucado. Até o experiente professor com quem ela fazia aula dar lugar a uma iniciante. "Eu estava com as pernas bem abertas, segurando os dedões. O objetivo dessa postura é encostar o peito no chão, mas eu sempre tive dificuldade nessa inclinação para a frente", conta. "A instrutora resolveu me dar uma mãozinha e empurrou minhas costas. Na hora, ouvi o som de um rasgo, e uma dor na virilha me acompanha desde então." Isso foi há oito meses.
É por isso que Carolina Bonfanti, instrutora do Espaço, em São Paulo, gosta de explicar as posturas em detalhes. "Às vezes os alunos não entendem onde está o eixo de cada postura", diz. "Nessa hora, não adianta o instrutor empurrar."

Limites
Mas não são só os professores que exageram na dose. Os alunos também ultrapassam seus limites com freqüência. É por isso que a fisioterapeuta Claudia Quintanilha Ribeiro insiste: "Cada um deve conhecer o seu próprio corpo e saber o que é medo, limite físico e dor".
A verdade é que essa não é uma tarefa simples. Até mesmo os mais tarimbados escorregam quando o assunto é autoconhecimento. Mariana Lara, 24, estuda dança há quatro anos e se considera boa no quesito consciência corporal.
Mas toda a técnica não foi suficiente para evitar uma séria lesão no joelho, três anos atrás, em sua primeira e última aula de ioga.
"O professor pediu que eu imitasse seus movimentos e, na hora de fazer a posição de lótus, senti um forte estalo no joelho", conta. "Sofri uma lesão nos ligamentos, no tendão e no músculo. Fiquei dois meses imobilizada e até hoje sinto dor."


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