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saúde
Desde cedo
Cólica incapacitante em adolescentes é o primeiro sintoma da endometriose, que pode levar à infertilidade e consegue ser contornada com diagnóstico precoce
TATIANA DINIZ
DA REPORTAGEM LOCAL
F
icar de cama "naqueles dias" é normal na
adolescência. E, quando casar, passa. A
brincadeira repetida por avós,
mães e tias entre ofertas de
chás e de bolsas de água quente
perdeu a graça. No lugar dela,
entra um alerta nacional para
que as famílias desconfiem da
recorrência de cólicas incapacitantes: é o primeiro sintoma da
endometriose, que pode levar à
infertilidade na idade adulta e
que tem muito mais chances de
ser contornada com um diagnóstico precoce.
A doença, que se caracteriza
pela presença do endométrio
(tecido que compõe a camada
interna do útero) fora do seu
órgão de origem, ganhou o apelido de "mal da mulher moderna" e começou a chamar a atenção nos últimos dez anos.
Das clínicas de fertilização
vem a maioria das pacientes
que partem para investigações
e recebem o diagnóstico. Embora não existam estatísticas
precisas dos casos de infertilidade, é consenso entre os especialistas que essa é uma das
causas mais freqüentes da dificuldade de engravidar, e sabe-se que metade das portadoras
se torna infértil.
O que poucos consideram é
que essa dificuldade se desenvolve lentamente e pode ser desencadeada logo no início da
idade reprodutiva, antes mesmo de a menina ter sua primeira relação sexual.
"Endometriose é um problema que acomete quem menstrua. Mulheres que desenvolverão a enfermidade já podem
ter, aos 14, 15 ou 16 anos, a tendência ou a manifestação leve",
diz Marco Aurélio de Oliveira,
ginecologista e chefe do ambulatório de endometriose do
Hospital Universitário Pedro
Ernesto, da Uerj (Universidade
Estadual do Rio de Janeiro).
Segundo ele, a presença de adolescentes vem aumentando no
ambulatório, por onde já passaram mais de 400 pacientes.
A observação é compartilhada pela Abend (Associação Brasileira de Endometriose), que, a
pedido da Folha, analisou a faixa etária das portadoras que
procuram ajuda. "Levei um
susto. Mais da metade tem até
25 anos e já sentia os sintomas
há algum tempo", revela a presidente, Eleuze Mendonça.
A idéia de que sentir dor ao
menstruar não é nada demais é
uma das razões do diagnóstico
tardio -segundo estimativas
do Nepe (Núcleo Interdisciplinar de Ensino e Pesquisa em
Endometriose), meninas que
começam a sofrer com os sintomas na adolescência chegam
ao diagnóstico até 12 anos depois, quando muitos estragos já
foram feitos ao corpo.
O núcleo realizou na semana
passada, em São Paulo, a 1ª
Campanha Nacional de Esclarecimentos sobre a Endometriose, a fim de divulgar conhecimentos sobre a doença, que
hoje atinge cerca de 6 milhões
de brasileiras. No mundo, a
marca é de 30 milhões.
Incógnita
As causas do distúrbio seguem desconhecidas. Hoje,
uma das teorias mais difundidas é a de que alterações do sistema imunológico levam o corpo a atacar partículas do endométrio arrastadas no refluxo do
sangue menstrual para outros
tecidos (leia mais no quadro na
pág. 9), gerando inflamações
crônicas que podem levar à
adesão de órgãos. Fatores genéticos, estilo de vida, sedentarismo e alimentação inadequada potencializam o risco.
Facada
"Sempre tive cólica, mas, aos
16, piorou. Era uma dor diferente, aguda, parecia que me
davam uma facada na barriga",
conta a professora de matemática Karen Campitelli, 22, que
tem endometriose e já se submeteu a uma intervenção cirúrgica para tratar a doença.
Na cirurgia, ela teve de retirar o ovário esquerdo e um pedaço do intestino, que estavam
danificados.
A partir dos 16, era hospital
todo mês. "Tinha febre, passava
mal onde estivesse, na rua, no
ônibus. Era internada e me davam Buscopan na veia", lembra. Uma crise mais forte foi
confundida com apendicite.
Foi dessa vez, muitos anos depois de surgirem as primeiras
cólicas crônicas, que ela descobriu o que tinha realmente.
"Passei por tanta coisa, fiz
simpatia, pus garrafa quente na
barriga, tomei tanto chá, tanto
remédio. Ao mesmo tempo, tinha uma alimentação horrível,
passava 12 horas na faculdade
estudando, vivia estressada, só
comia besteira", relata.
Com o diagnóstico, veio o
medo. "Fiquei deprimida
achando que ia ficar estéril."
Mas a intervenção veio a tempo
de afastar essa possibilidade.
Hoje, Karen ensina: "Quem
tem muita dor, dessas de não
conseguir ir à escola nem fazer
nada, tem que se informar logo
cedo, ir ao médico, fazer exames. Eu achava que não precisava de ginecologista porque
era virgem. Toda menina precisa. Hoje estou bem, feliz, noiva,
sei que vou ter filhos. Faço ioga
para afastar o estresse e vigio a
alimentação. De lá para cá, já
perdi 14 kg".
Gravidez
O tempo de tratamento adequado é uma variável importante para evitar complicações
na gravidez. Que o diga a relações públicas Lívia de Queiroz
Soares, 23, grávida de sete meses. "Esse bebê na minha barriga é um milagre. Cada vez que
ouvi que talvez não pudesse ter
filhos fiquei arrasada. Fui até
Salvador com meu marido para
fazer promessa", conta.
Da primeira menstruação,
aos nove anos e acompanhada
de dores que ela descreve como
"insuportáveis", foram dez
anos até receber o diagnóstico
correto. As pistas sempre estiveram ali: além da dor recorrente, o fluxo era intenso e irregular. "A cólica era incapacitante, eu não fazia mais nada,
passava dias com as mãos suando de tanta dor."
Aos 19, foi internada, também com suspeita de apendicite. Descobriu a endometriose,
tratou-se e, mesmo assim, levou dois anos para engravidar.
"Tem sido uma gravidez complicada, tive pressão alta, perdi
líqüido amniótico. Mas o bebê
está aqui, firme."
Depois que soube o que tinha, Lívia fez campanha entre
as amigas para que investigassem suas cólicas. "Uma delas
descobriu que também tinha a
doença e nós passamos a nos
dar forças, a cuidar juntas."
Família
A família tem papel fundamental no incentivo ao diagnóstico precoce. "A mãe, que está mais próxima da garota,
não deve jamais subestimar as
queixas de cólica", ressalta
Eleuze Mendonça, da Abend.
Médicos e profissionais das
diversas especialidades que
acompanham adolescentes
-hebiatras, endocrinologistas,
nutricionistas, professores,
treinadores etc.- também devem estar aptos a reconhecer
os sinais da doença e recomendar a investigação.
Mesmo no universo das garotas que recebem acompanhamento médico regular, o diagnóstico pode demorar. Técnica
de enfermagem aposentada,
Marisa Mateus Canavezzi, 54,
leva a filha Isabelle dos Santos,
14, a hospitais do Rio de Janeiro regularmente desde que a
menina tinha seis anos.
"Isabelle teve puberdade
precoce e começou a tomar injeções de hormônio para retardar a menstruação. Menstruou
aos 11 anos, passou por ginecologistas e endocrinologistas,
sempre tendo muita cólica e
fluxo intenso. Ninguém nunca
falou em endometriose", conta.
A palavra surgiu pela primeira vez no mês passado, quando
uma ginecologista decidiu pedir a análise, em exame de sangue, do índice medidor tumoral
CA125. Essa é uma das pistas a
serem rastreadas nas potenciais portadoras da doenças. Os
de Isabelle estavam altos, o que
levou Marisa a partir para investigações mais específicas sobre a doença.
"Minha filha é acompanhada
regularmente desde criança. Só
agora estamos descobrindo o
que ela tem. Recomendo às
mães de meninas que entram
em puberdade precocemente
que abram os olhos, que procurem o ginecologista, que se informem sobre a endometriose", comenta.
Controle
A partir do diagnóstico, a estratégia de controle pode ser
traçada. Isso porque a endometriose, como o diabetes, é um
quadro sem cura, mas a portadora pode controlar a evolução
e se livrar da perda de qualidade de vida.
Parte desse cuidado vem da
orientação psicológica. "Costumo dizer que 50% do tratamento é terapia", enfatiza Patrícia
Mello, ginecologista do Hospital Beneficência Portuguesa,
em São Paulo. "Em casa, os pais
devem observar as filhas. Será
que estão dando conta de tantas transformações? As que
têm mais dificuldade de encarar essa transição geralmente
estão mais suscetíveis à endometriose", completa.
O tratamento é feito com laparospcopia (cirurgia com vídeo), em que são removidas
áreas de tecido atingidas pela
endometriose, e suspensão de
menstruação, na maioria dos
casos. O tipo de medicamento
usado para suspender a menstruação e o tempo desse procedimento variam de acordo com
cada paciente.
Encarar a vida com menos
pressão, comer bem, praticar
exercícios, cultivar o bem-estar. Esses são os ingredientes
finais da receita para afastar as
complicações da doença e manter o corpo sob controle.
É nelas que hoje se concentra
a estudante Isadora Lepera Ribeiro, 21, que corre atrás de
muitos anos perdidos. "Minha
adolescência foi difícil. Passava
metade do mês de TPM e a outra metade esperando os sintomas. Cada vez que menstruava,
perdia escola, festa, tudo. Minhas amigas não tinham nada
daquilo. Não entendia", diz.
Embora os sintomas tenham
se manifestado desde os 12
anos, ela só soube da endometriose há pouco tempo. Há um
mês, fez a cirurgia de tratamento. "Tudo que penso é que podia
ter descoberto aos 15 anos e sofrido muito menos. Foram nove anos muito ruins. Esse tratamento poderia ter vindo muito
antes", conclui.
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