São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2008
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SAÚDE

Fora de compasso

Pesquisas com pianistas e violinistas mostram que mais de 90% têm lesões; movimentos repetitivos, postura inadequada e esforço exagerado são as causas mais comuns

Greg Salibian/Folha Imagem
Lucas Espósito, que desenvolveu uma hérnia de disco por se curvar demais ao tocar contrabaixo acústico

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

SÍLVIA AMÉLIA DE ARAÚJO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Gustavo precisa recorrer freqüentemente a massagens para atenuar as dores que sente nas costas. Já Carlos Eduardo, o Cacá, perdeu a conta do número de vezes em que seu pulso abriu. Lucas desenvolveu uma hérnia de disco. Anderson, tendinite nos ombros. Vôlei? Boxe? Futebol? Nada disso. Os problemas que eles enfrentam decorrem de outra atividade: a música.
Embora ninguém costume associar a flauta ou o piano a qualquer risco para a saúde, o índice de sintomas de desgaste físico entre músicos pode ser muito alto. Uma pesquisa recente com 93 pianistas, por exemplo, mostrou que 92% deles apresentam queixas como dor, fadiga muscular e dormência.
O autor do estudo é o médico e também pianista João Gabriel Fonseca, professor das Faculdades de Medicina e de Música da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que estuda problemas de saúde relacionados com a prática musical há 25 anos. Ele também criou o Exerser - Núcleo de Atenção Integral à Saúde do Músico, grupo multiprofissional de estudos sobre o tema.
Outra pesquisadora do Exerser, a terapeuta ocupacional Ronise Costa Lima, avaliou violinistas e constatou um índice ainda mais alto de queixas: 94,5% deles apresentavam sintomas físicos ligados ao uso do instrumento.
A experiência de Anderson Alves, 22, condiz com as duas pesquisas. Pianista, ele decidiu, há dois anos, aprender também a tocar violino -além de iniciar seus estudos de regência. Em pouco tempo, começou a sentir muita dor nos ombros. "Pensei que era por causa do peso da mochila", lembra ele.
Devido à tendinite, Anderson parou de tocar violino. Mas ainda tem uma rotina puxada como pianista e regente. "Comecei a fazer fisioterapia também, mas, por falta de tempo, até hoje não consegui manter uma seqüência no tratamento", conta ele. "Também comecei a sentir dores no pescoço quando toco, mas ainda não procurei um médico para saber o que é."
A maioria dos músicos sofre com problemas de coluna e tensão muscular, mas só aparece nos consultórios quando a dor se torna insuportável ou quando já sente perda de controle de alguns movimentos. "As pessoas dificilmente fazem uma prevenção", afirma Fonseca, que diz que os músicos costumam achar que "sentir dor faz parte".
Para Lima, os músicos têm pouca noção sobre como o seu trabalho afeta a sua saúde. "Eles percebem que a iluminação interfere na leitura da partitura, mas não que estão numa postura errada", exemplifica. Como conseqüência, muitos contraem doenças, em especial as LER/DORT (lesões por esforço repetitivo/distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho).

Instrumentos
O risco de lesão varia conforme o instrumento musical. De acordo com Fonseca, os mais problemáticos são os assimétricos, como violão, violino e flauta transversal. Esses instrumentos são os que exigem assimetria do corpo, ou seja, o músico precisa ficar "torto" para tocá-los corretamente.
Mas Yumi Kaneko, médica do serviço de reabilitação física que o Sesi (Serviço Social da Indústria) de São Paulo oferece a músicos, é taxativa: "Não existe nenhum instrumento musical que seja ergonomicamente adequado".
Quem toca tuba, por exemplo, corre o risco de ter hipertensão, devido à pressão que o fluxo de ar exigido pelo instrumento promove no organismo. Pianistas, por sua vez, ficam numa posição simétrica, mas podem ter problemas na coluna, nos ombros, no pescoço e na articulação dos punhos, dos cotovelos e dos dedos.
Como o piano é um instrumento que não permite ajustes (só no banco), o tipo físico do músico pode favorecer o aparecimento de lesões específicas.
Um pianista muito alto tem de se curvar para ler a partitura, o que pode afetar o pescoço. Já um baixo pode ter dificuldades para alcançar o pedal e ter de esticar a perna -caso de uma paciente de Fonseca.
A pianista, de 1,48 m, não consegue mais se levantar da cama devido às dores de uma pubalgia (doença que afeta o osso abaixo da bacia, muito comum em jogadores de futebol).
Quem começa a estudar música muito jovem tem mais chances de desenvolver adaptações anatômicas que facilitam a prática, afirma Kaneko. Segundo ela, estudos mostram que quem toca violino desde a infância, por exemplo, tem dedos muito mais flexíveis e a mão esquerda um pouco maior do que a direita. "No Brasil, a educação musical é muito tardia. Nossos instrumentistas iniciam os estudos em idade avançada e não desenvolvem essas adaptações anatômicas que os favoreceriam."

Causas
Características físicas à parte, as causas mais comuns de doenças ocupacionais entre músicos são os movimentos repetitivos, as posturas inadequadas e o esforço exagerado -e muitas vezes desnecessário- ao tocar o instrumento.
Mesmo quem toca por hobby está sujeito a complicações. O aposentado Tobias Rubistein, 75, toca flauta e saxofone de forma amadora e teve uma epicondilite lateral do cotovelo -lesão que acomete os tendões da região devido a movimentos repetitivos.
O problema, afirma, estava relacionado à forma como empunhava a flauta. Após algumas sessões de fisioterapia, pôde voltar a tocar normalmente -incluindo as apresentações voluntárias que faz, uma vez por mês, num centro para idosos. Segundo os especialistas, os riscos também dependem das outras atividades que o músico amador realiza. Lima, da Exerser, cita como exemplo pessoas que digitam no computador e tocam piano. "Os movimentos são parecidos e o risco aumenta."
Mas, em geral, o profissional é quem mais sofre. "É como comparar o maratonista com a pessoa que faz uma caminhada", afirma Fonseca.
Lucas Espósito,27, da Academia de Música da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), desenvolveu uma hérnia de disco por se curvar demais ao tocar contrabaixo acústico, instrumento que estuda há cinco anos, durante cinco horas por dia, em média. Ele sentia dor na região lombar há alguns anos e, em janeiro deste ano, travou após uma apresentação. Resolveu fazer pilates, mas, como não sabia que tinha uma hérnia, realizou alguns movimentos que agravaram a situação.
Para melhorar o quadro, Lucas fez ioga, pilates e hidroterapia, além de estar mais atento à postura. "Talvez se eu tivesse dobrado os joelhos, tentado manter a lombar mais ereta, não tivesse esse problema", diz ele, que até já se filmou tocando para levar a gravação à consulta.
Outro aspecto que costuma afetar os músicos é a pressão emocional -e seus reflexos na tensão muscular. "A ansiedade pelo bom desempenho faz a pessoa se esquecer da dor e se submeter a níveis inimagináveis de esforço físico e de agressão ao corpo", diz Fonseca.
Aprender a relaxar é fundamental, afirma Alexandre Feldman, médico responsável pelo programa Medicina e Qualidade de Vida da Osesp. "Os músicos são uma população peculiar. Eles trabalham quando os outros estão descansando, sofrem pressão para mostrar perfeição e sincronia absoluta. Isso leva a muito estresse, que gera alterações hormonais, afeta a imunidade... É um ambiente propício ao desequilíbrio da saúde."
O programa desenvolvido na Osesp busca prevenir problemas como lesões por meio de mudanças no estilo de vida dos músicos. Um dos principais desafios, diz Feldman, tem sido o sono -prejudicado pelo excesso de trabalho.
Muitos músicos ensaiam e dão aulas particulares durante o dia, apresentam-se à noite e, não raro, também têm o fim de semana e os feriados ocupados por compromissos profissionais.
O baterista Gustavo Souza, 34, conhece essa rotina. "Recentemente, trabalhei de madrugada, fui dormir às 5h e, às 10h, já tive ensaio. É difícil recompor a energia toda", conta ele, que já teve tendinite e, freqüentemente, sente dores nas costas -relacionadas não só aos momentos em que toca a bateria, mas também ao fato de ter de carregar, montar e desmontar o instrumento.
No Carnaval, foi ainda pior. Ele passou o feriado trabalhando em Recife, num ritmo intenso e, ao voltar para São Paulo, ficou tão mal devido a uma virose que precisou ser internado. "Acho que o estresse e o cansaço influenciaram", afirma. Segundo Fonseca, músicos populares costumam enfrentar condições de trabalho ainda mais insalubres do que as dos músicos eruditos. "A maioria trabalha em situação informal e mal remunerada", afirma.
"A gente não tem segurança financeira", conta o baterista Carlos Eduardo Zulino, 28, que, quando abre o pulso, coloca uma proteção e toca mesmo assim -em média, quatro horas por dia. "Não dá tempo de recuperar."


Texto Anterior: Viagem: Atenção, senhores passageiros
Próximo Texto: Especialistas evitam pedir que paciente pare de tocar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.