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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003
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s.o.s família - rosely sayão

Violência juvenil e falta de brincar na infância

Em quase todo Carnaval é a mesma coisa: sabemos de notícias a respeito de grupos de adolescentes que praticam atos violentos aqui e ali. Na verdade, isso acontece em quase todos os lugares lotados de turistas nesses dias, mas nem sempre a agressão que eles cometem se transforma em notícia. Quem viaja nesse período sabe como é comum ver -e sofrer- o que eles fazem: sacos plásticos cheios de xixi ou outro líquido jogados de prédios, ovo e farinha lançados alternadamente sobre carros com famílias, empurrões deliberados em pessoas indefesas etc.
Conversei com três adolescentes -que me garantiram não ter o costume de participar dessa farra- para saber que motivos eles atribuem a esse comportamento. Todos deram razões bem diferentes, mas concordaram em uma: "É só uma brincadeira". E isso nos faz pensar. Como esses jovens passaram a infância? É bom lembrar que não se trata de localizar em costumes familiares ou no comportamento dos pais as causas que explicariam esse comportamento tão pouco civilizado na adolescência, mas de considerar nosso estilo de vida atual.
As crianças hoje quase não têm espaço para criar brincadeiras que expressem suas emoções e seus conflitos, não é verdade? Os brinquedos já chegam todos prontos, as brincadeiras quase sempre são propostas -quando não impostas- por adultos e por eles mediadas, em geral elas nem podem lambuzar-se muito e ficar à vontade porque têm pouco ou nenhum espaço para experimentar, ousar e errar com as brincadeiras. Quando erram, logo são repreendidas, mas nem sempre ganham a chance de aprender com o erro cometido.
E é assim que eles passam a infância, inclusive os primeiros anos: "aprendendo" teoricamente coisas importantes como respeitar a si mesmo e aos outros, respeitar o meio em que vivem e a vida em grupo. Só que isso eles deveriam aprender na prática, com as brincadeiras próprias da vida de criança e seus devidos riscos.
O problema é que parece que fica faltando essa parte na vida delas. Assim, tão logo ganham um pouco de independência em relação aos adultos, vão fazer tudo o que deveriam ter feito quando menores. Só que, agora, com efeitos devastadores para o grupo e, principalmente, para eles -mesmo que não saibam nem se dêem conta disso. Não foi exatamente isso que disseram os adolescentes com quem conversei? Eles não se referiram às atitudes de seus pares como "brincadeiras"? É, mas brincadeiras fora de hora na vida deles.
Será que esses atos violentos dos jovens adolescentes seriam tão violentos assim se praticados bem antes? Que criança não experimenta impingir a outros o dissabor que sente, por exemplo? Não é comum também a criança fazer e/ou dizer coisas sem se preocupar se isso pode ferir, magoar ou provocar sofrimento nos outros? As crianças também não se divertem -e depois sofrem- quando provocam ou presenciam uma situação em que outra pessoa se dá mal? Isso sem contar que elas adoram checar se o que os adultos dizem é verdade, como quando atiram ao chão um objeto frágil e querido pelos pais só para testar se quebra mesmo. Tudo isso é natural no comportamento da criança e provoca um efeito quando o adulto educador faz seu papel: o aprendizado sobre a vida com seus riscos e suas possibilidades, sobre a convivência em grupo com seus benefícios e os limites que impõe e a constatação de que um ato ou uma decisão sempre tem desdobramentos.
Brincar com liberdade de experimentação, de exploração, de criação e sem medo de errar não é apenas um jeito de a criança passar bem o tempo que tem. Brincar desse modo é importante também para o futuro dela. Que tal tirar -pelo menos o possível- os limites inúteis da vida de nossas crianças? Sabemos que a infância não é um paraíso, mas também não deve ser uma tragédia; é apenas um drama a ser superado.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo é Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br.


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