São Paulo, quinta-feira, 21 de junho de 2007
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alimentação

não contém glúten

De acordo com pesquisas recentes, mais gente do que se pensava deve ficar atenta ao aviso nas embalagens, mas o glúten só deve ser retirado da dieta após avaliação médica

FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL

De repente, aquela cervejinha gelada na happy hour ou o copinho de uísque do fim de semana passam a ser terminantemente proibidos. Comer fora de casa exige todo o cuidado do mundo. Pães, bolos e salgadinhos, só se forem especiais, sem farinha de trigo. Até a hóstia da comunhão católica é vetada -é preciso conversar com o padre para passar a comungar tomando vinho.
Assim é a vida após o diagnóstico de doença celíaca, intolerância permanente ao glúten (proteína presente no trigo, na aveia, no centeio, na cevada e no malte), que costuma surgir na infância, mas pode aparecer em qualquer idade.
Até há pouco tempo restrita ao universo de quem tem o problema e a seus amigos e familiares, a doença celíaca ficou mais conhecida no Brasil depois da entrada em vigor, em 2003, da lei que obriga os fabricantes de alimentos a declarar, nos rótulos, as palavras "contém glúten" ou "não contém glúten".
Nos últimos anos, estudos vêm sendo feitos para detectar a prevalência do problema na população brasileira. O último deles, realizado na cidade de São Paulo, mostra que há mais afetados do que se imaginava: pelo menos 1 em cada 214 pessoas estudadas apresentou o problema.
Realizado por uma equipe da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e publicado no "European Journal of Gastroenterology and Hepatology", o levantamento avaliou 3.000 doadores de sangue -indivíduos que, presumivelmente, consideram-se saudáveis. Estudos semelhantes feitos anteriormente em Ribeirão Preto e em Brasília haviam detectado uma prevalência menor: 1 para cada 273 e 1 para 680, respectivamente.
"Parecia ser uma doença rara, mas descobrimos que a prevalência é alta no nosso meio", afirma a coordenadora da pesquisa, a gastroenterologista pediátrica Vera Lúcia Sdepanian, chefe do ambulatório de celíacos da Unifesp. Segundo ela, a grande variação em relação a Brasília pode ser devido à diferença de etnias dos moradores. A doença celíaca afeta mais descendentes de europeus do que negros e índios.
A pesquisadora ressalta que a prevalência em São Paulo provavelmente é até maior do que o índice obtido.
Isso porque o estudo foi feito em duas etapas. Na primeira, avaliou-se se um anticorpo chamado transglutaminase estava elevado -o que ocorre nos celíacos, mas não confirma o diagnóstico. Para ter certeza do quadro, é preciso fazer uma biópsia do intestino delgado, e apenas metade dos pré-selecionados na primeira fase concordou em fazer essa investigação. "Se todos os doadores com anticorpo positivo tivessem concordado em fazer a biópsia e mantivéssemos a mesma proporção de posivitividade, pode ser que esse índice chegasse a 1 em cada 100 pesquisados", diz Sdepanian.
Ela acredita que, quando as indústrias perceberem que há bastante gente afetada, as opções de alimentos para celíacos devem aumentar. "Na Europa, existem grandes indústrias que produzem apenas alimentos para celíacos. No Brasil, são mais as empresas pequenas e médias que perceberam o potencial desse mercado", diz. Nos EUA, é possível até participar de cruzeiros, jantares e convenções onde tudo o que é servido é isento de glúten -uma empresa criada por um celíaco se especializou nisso.
"As pessoas estão muito mais conscientes dos problemas que o glúten pode causar", disse à Folha o gastroenterologista norte-americano Joe Murray, da Mayo Clinic, especialista em doença celíaca. Ele diz que o número de diagnósticos da doença vem crescendo, mas que ainda não se sabe se o problema se tornou mais comum ou se apenas está sendo detectado com mais eficácia. "Acho que é um pouco dos dois, já que o consumo de trigo vem aumentando", opina.
Por enquanto, muitas vezes a opção é preparar a própria comida, lançando mão de ingredientes como creme de arroz, polvilho e amido de milho. Desde que sejam tomados alguns cuidados, cozinhar em casa ajuda ainda a evitar a contaminação que ocorre com freqüência em restaurantes e padarias, nos quais a mesma pessoa que prepara e serve alimentos com glúten manuseia os alimentos sem glúten.

Sintomas
Ainda não se sabe o que desencadeia a doença celíaca. Sabe-se que há fatores genéticos envolvidos. A doença pode demorar a ser identificada porque os sintomas podem ser confundidos com outros males. As manifestações mais comuns incluem diarréia freqüente, emagrecimento, vômitos e dor abdominal. Como o glúten danifica as vilosidades (saliências) do intestino delgado dos celíacos, eles têm deficiência na absorção de nutrientes, o que pode causar, por exemplo, anemia e osteoporose.
Há também quem não tenha sintomas clássicos como diarréia e apresente outros sinais, que vão de baixa estatura sem causa aparente a distúrbios neurológicos ou psiquiátricos (problemas de equilíbrio, esquizofrenia, depressão).
Apesar de existirem estudos que buscam um tratamento para o problema, ainda não há nada concreto. Hoje, a única solução é cortar o glúten totalmente da dieta -o que, na prática, não é fácil. "É difícil fazer o paciente aderir a essa dieta. Muitos ficam com raiva do diagnóstico por saberem que terão de mudar o hábito alimentar radicalmente", diz a nutricionista Karin Hirayama, que acaba de finalizar um estudo sobre a preparação de alimentos caseiros pelos celíacos.
No estudo, a maioria conseguiu cozinhar alimentos livres de contaminação por glúten. Mas ela descobriu também que quase todos os que transgrediam a dieta o faziam voluntariamente, e não por acidente -polvilhar com farinha de trigo a forma que faz um bolo sem glúten, por exemplo. Segundo a nutricionista, os celíacos podem ter tolerância a pequenas quantidades de glúten, mas isso varia muito e não pode ser dosado no dia-a-dia. "Por isso, a recomendação é a restrição total."
O impacto na vida social também pode ser grande. O administrador Péricles Marques, 48, evitava levar o filho Marcus Vinicius, 26, celíaco desde um ano e meio de idade, à casa de parentes e a festinhas. "Na primeira escapada alguém queria dar pão escondido para ele. Na escola, ele só comia pipoca", conta ele, que ajudou a fundar a Acelbra (Associação dos Celíacos do Brasil) e hoje é membro da diretoria da entidade.
Para Marques, a vida do celíaco ficou um pouco mais fácil. "Antigamente só tinha fécula de batata de uma marca, creme de arroz e polvilho. Hoje dá para encontrar as coisas com mais facilidade. Pedimos colaboração das empresas para que façam produtos voltados para esses pacientes."


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