São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006
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Mente

Governo federal implanta centros para superdotados; entenda esse conceito

Talento de sobra

Marlene Bergamo/Folha Imagem
André Kfouri, 8, que se interessa por robótica


FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL

O QI (quociente intelectual) da humanidade está aumentando. Desde que se começou a fazer avaliações formais para o índice, no início do século 20, a pontuação média vem crescendo. Segundo o neuropsicólogo Daniel Fuentes, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, uma das explicações para esse fenômeno é a melhoria da qualidade de vida, com maior acesso à alimentação, à saúde e à higiene. Ele também destaca o aspecto sociocultural, com mais informação e oportunidades de desenvolvimento cognitivo.
Para além de um alto QI, que há muito deixou de ser a única medida de inteligência, há crianças que podem ser classificadas como superdotadas por se destacarem em diversas áreas. A definição adotada oficialmente no Brasil para o conceito de superdotação -ou altas habilidades, como é mais recentemente conhecido- abrange, além da inteligência formal, áreas como criatividade, liderança, motivação, artes e desenvolvimento psicomotor. Assim, crianças que tenham talento para a música, para as artes ou para um esporte, por exemplo, podem se enquadrar na definição.
Para identificar essas crianças e prestar-lhes um atendimento adequado, o Ministério da Educação (MEC) está criando centros específicos nas 27 capitais brasileiras. A idéia é oferecer apoio para que elas desenvolvam suas habilidades -área em que o Brasil ainda tem pouca tradição em relação a outros países, como os Estados Unidos. "Consideramos o superdotado um excluído. Todas as crianças deveriam ter o direito de desenvolver seu talento. As que se destacam merecem um atendimento diferenciado que a escola não dá conta de oferecer", afirma a psicóloga Angela Virgolim, presidente do Conbrasd (Conselho Brasileiro para Superdotação; www.conbrasd.com.br).
Os professores de Sophie Garbati McManis, 12, ajudaram a descobrir que a menina tem altas habilidades. "Ela sempre foi diferente, mas nunca pensei em superdotação. Na escola, foi ficando evidente. Quando foi avaliada, aos oito anos, vimos que ela tinha idade mental de 12", diz a mãe, a roteirista Aline Garbati, 33.
Sophie tem múltiplos talentos. Enquanto os colegas se alfabetizavam, ela já tinha lido todos os livros do Harry Potter. Na primeira série, ficava pedindo que a mãe criasse problemas matemáticos para ela resolver. Ela toca piano, guitarra e violino, adora ler, sabe francês e inglês e estuda alemão e japonês.

NÚCLEOS
Segundo informações do MEC, foram investidos R$ 2 milhões na criação dos Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S). Cada núcleo atenderá a 60 alunos por ano. A previsão para o início das atividades é a partir de abril.
O programa funcionará por meio de atendimento no período contrário ao turno de aula do aluno. A idéia é que ele continue a freqüentar classes regulares, mas conte com ajuda extra para desenvolver sua habilidade em outros horários. "Se ele tiver facilidade para escrever, poderá ter o auxílio de um professor de português ou de um especialista que seja parceiro dos núcleos. Ele será orientado a criar projetos, como escrever um livro ou organizar eventos de poesias", exemplifica a pedagoga Renata Maia-Pinto, assessora técnica da Secretaria de Educação Especial do MEC.


A definição oficial de superdotação abrange áreas como criatividade, liderança e motivação

Segundo ela, os dados do Censo Escolar 2005 -que identificaram apenas 1.980 crianças superdotadas em todo o país- mostram que o tema ainda é pouco divulgado. "O número está subestimado", diz.

AMPLIANDO CONCEITOS
Uma das grandes confusões ocorre em relação ao conceito de superdotação. Para quase todo mundo, a primeira idéia que vem à cabeça é a da criança que sabe tudo de matemática e só tira nota máxima. A definição adotada pelo governo brasileiro, que contempla várias áreas, foi inspirada em conceitos norte-americanos.
"Há muitas concepções para superdotação. Cada país vê a questão de uma forma, de acordo com seus valores. Claro que quase sempre a parte da inteligência formal é a mais valorizada. Mas no Brasil temos essa definição mais ampla", diz a psicóloga Eunice Soriano de Alencar, professora emérita da UnB (Universidade de Brasília), que pesquisa superdotação há mais de 30 anos. Ela lembra que o conceito abrange três gradações: precoce, que caracteriza pessoas que apresentam prematuramente alguma habilidade; prodígio, que define crianças que têm habilidades em nível de adulto, e gênio, destinado a quem dá contribuições extraordinárias à humanidade.
A idéia de que o superdotado sempre vai bem na escola também é um mito. Muitas vezes, ele apresenta desempenho acima da média em uma disciplina, mas não vai tão bem nas outras. Além disso, dificuldades de aceitação e falta de valorização do talento fazem com que muitos neguem suas habilidades e tenham mau comportamento na sala de aula.
O tédio em relação aos conteúdos da escola, que muitos já dominam, também pode fazer com que eles se desinteressem das tarefas. "Muitas vezes, as atividades escolares são direcionadas a um só tipo de resposta, sem a valorização do pensamento criativo. Quando o aluno não é atendido em suas necessidades, tende a negar o talento", diz a psicóloga Jane Farias Chagas, da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.

Nem sempre o superdotado vai bem na escola; dificuldades de aceitação fazem com que muitos neguem as habilidades

Foi o que aconteceu com Giovanna Abrantes Oliveira, 9 (idade mental de 12). Apesar da facilidade para acompanhar as disciplinas escolares, sua mãe, a empresária Cláudia Abrantes Oliveira, 38, era chamada sempre à escola por causa de problemas de comportamento.
"Ela tirava notas ótimas, mas a professora não sabia como tratá-la. Quando ela repetia a explicação várias vezes, a Giovanna ficava entediada e chegava a sair da sala. Mudei ela de escola, e não tivemos mais problemas", diz Cláudia.
Em seu mestrado na UnB, Jane Chagas acompanhou 14 famílias de superdotados e outras 14 de alunos não-superdotados de escolas públicas. Do primeiro grupo, 42% já haviam sido reprovados ou estavam defasados em relação ao ano letivo.
A pesquisadora também analisou o papel das famílias no desenvolvimento das habilidades. "Ficou evidente que um fator que favorece muito a superdotação é o fato de os pais valorizarem o desempenho dos filhos, procurando monitores ou programas de ajuda", diz.
O estímulo familiar se enquadra nos fatores ambientais, considerados fundamentais para desabrochar os talentos. Apesar disso, principalmente em relação à inteligência que pode ser medida por testes de QI, há um forte fator genético.
"É evidente que outros fatores, como o ambiente, são fundamentais, mas aquilo que parece assumir um papel mais decisivo refere-se à genética", diz a pedagoga Dora Cortat Simonetti, sócia fundadora e membro do conselho técnico da Associação Brasileira para Altas Habilidades/Superdotados (www.altashabilidades.com.br).
Ela afirma que o desenvolvimento das ciências neurológicas avançou nos estudos do cérebro dos superdotados. "As varreduras por tomografia computadorizada por emissão de pósitrons mostram que, quando as pessoas com alto QI são envolvidas em tarefas de exigências cognitivas, seus cérebros parecem usar mais eficientemente a glicose nas áreas específicas para a tarefa", diz.

Segundo Jane Chagas, os pais devem ficar atentos às demandas dos filhos, e não criar demandas para eles, forçando a barra

Segundo o neurocirurgião Joel Augusto Ribeiro Teixeira, presidente da Mensa Brasil (www.mensa.com.br), sociedade formada por pessoas de alto QI, trata-se de um campo recente e difícil de pesquisar. "A explicação mais simplista é que ocorra um maior número de sinapses, ou interligações entre os neurônios, no cérebro dos superdotados", diz.
De acordo com Teixeira, não se sabe ao certo qual fator (a genética ou o ambiente) é mais importante no desenvolvimento da superdotação. "A gente nota que a hereditariedade é muito importante. Por outro lado, pais mais inteligentes tendem a dar melhores opções ao filho, a explicar mais coisas para ele. Por isso, as coisas não são tão claras", afirma.
Ele diz que os testes de QI variam e que não há um resultado que defina um limite para a superdotação. O que se faz é chegar a um valor estatístico que situa o indivíduo em relação à população geral. Assim, é considerada superdotada a pessoa que estiver entre os 5% da população com melhor desempenho. A Mensa aceita apenas membros na faixa dos 2%.
Para Teixeira, o conceito de superdotação relacionado a várias áreas é abrangente demais. "As autoridades estão querendo democratizar a inteligência. Quando começa a ficar muito abrangente, você deixa de ter limites e fica na análise subjetiva. Acaba ocorrendo uma interferência social numa área científica."

AVALIAÇÃO
Para identificar os superdotados dentro das várias categorias da definição oficial de altas habilidades, o teste de QI não é suficiente. Além dos testes psicológicos -como os de criatividade-, os especialistas afirmam que existem sinais que possibilitam a identificação dessas crianças. "São traços que os talentosos apresentam acima da média em relação àqueles da mesma faixa etária. Observar uma criança nas suas ações cotidianas é a maneira mais natural de conhecê-la", diz Simonetti. Entre as características, ela cita curiosidade com qualidade e inesgotável (diferente da natural das crianças), memória acentuada natural (que não seja treinada), imaginação fértil com originalidade e flexibilidade de idéias.
Uma vez identificado o talento, devem ser criadas condições para que ele se desenvolva. Pode-se recorrer a atividades extraclasse ou a programas especializados, como as salas de recursos, onde a criança desenvolve projetos relacionados a suas potencialidades e convive com outras com características parecidas.
Quem mora em cidades que não tenham centros especializados pode recorrer a mentores -especialistas que acompanhem crianças com talento para sua área de atuação.
Há 13 anos, funciona no município de Lavras, no interior de Minas Gerais, uma iniciativa que é considerada uma referência na área. O Cedet (Centro de Desenvolvimento do Potencial e Talento, www.aspat.ufla.br) atende, atualmente, 700 crianças.
Professores treinados vão semanalmente às escolas fazer a identificação dos alunos com altas habilidades. Os selecionados passam cerca de dez horas por semana fazendo atividades individuais ou em grupo voltadas para o talento que elas demonstram.
"Procuramos voluntários que ensinam o conteúdo. São professores de botânica, lingüística, teatro, música e xadrez, entre muitas outras áreas", diz Zenita Guenther, diretora técnica da Aspat (Associação de Pais e Amigos para Apoio ao Talento, que cuida do projeto).

SEM TRAUMAS
Um medo compartilhado por muitos pais de crianças com altas habilidades é o de não sobrecarregá-las, já que, quando a cobrança é muito grande, o talento pode se revelar um peso para elas. Segundo Jane Chagas, o segredo é ficar atento às demandas dos filhos, e não criar demandas. "São eles que dirão do que precisam e o quanto precisam. Temos que ter altas expectativas, mas não podemos cobrar demais nem forçar muito a barra", recomenda.
O conselho de Zenita Guenther é que os pais não fiquem mostrando muito as habilidades da criança para as outras pessoas. "Isso pode fazer com que ela perca o foco e passe a realizar aquela tarefa só para mostrar às pessoas. Os pais devem ficar com a boca mais fechada e os olhos e ouvidos bem abertos."
Considerada um prodígio das artes plásticas, a americana Marla Olmstead, 6, vive uma vida não muito diferente das outras crianças graças à proteção dos pais. "O lado artístico é apenas uma pequena parte do que ela é. O talento não é nada sem a alegria e o desejo. Enquanto Marla gostar de pintar, a encorajaremos e apoiaremos. Mas ela só terá uma infância, e queremos preservá-la", disse à Folha a mãe, Laura Olmstead.
A empresária Janine Saponara, 37, também faz de tudo para que seu filho, André Saponara Kfouri, 8, QI 100% acima da média, cresça de forma saudável e sem cobranças em excesso. "Ele é tratado como uma pessoa diferente, e não como alguém "super". Se por um lado ele é melhor nos estudos do que os colegas, por outro ele tem uma pequena defasagem motora e é pior no futebol", compara.
Além de só tirar nota máxima na escola, André é campeão de xadrez, adora música clássica, faz aula de robótica e se interessa em profundidade pelos temas que lhe agradam, do PH de Saturno a detalhes sobre o Egito antigo. Numa viagem a Nova York, foi o guia dos pais, pois havia pesquisado tudo sobre a cidade.
"Ele sabe que tem limites e obrigações. Faz as tarefas da escola comum, mesmo que tenha interesses por coisas mais avançadas. O importante é que ele tenha supridas suas necessidades de informação", diz a mãe.


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