São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2007
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Outras idéias - Dulce Critelli

Exilados

Quando entrei para a faculdade, li um romance que todo universitário lia, "A Erva do Diabo", de Castanheda. O xamã D. Juan recebe um jovem antropólogo americano entre os índios que iniciava para o consumo da erva peiote. Num dos primeiros encontros, o jovem antropólogo vai à casa de D. Juan e vê que cada um que chega corre os olhos pela varanda e se senta num canto. Ele, então, pergunta a D. Juan qual lugar lhe estaria reservado. O índio responde, e isso era parte da iniciação, que ele mesmo deve encontrar o lugar que lhe é próprio. O jovem rola pelo chão de um lado para outro, até que, depois de algum tempo, vê brilhar um ponto no chão. Era esse o lugar dele.


[...] A casa nos ajuda a fincar raízes neste mundo e em nós mesmos, conserva nossa história e acolhe objetos que são a memória das nossas alegrias e tristezas


Esse episódio me marcou como uma revelação: cada um de nós tem, no mundo, um lugar que nos pertence e ao qual pertencemos. Um ponto, no mundo, onde nos instalaremos e que chamaremos de nosso. Podem ser muitos, mas o mais importante deles é a nossa casa. Ela brilha para nós e nos aconchega. Ela desempenha o mesmo papel de uma trilha musical num filme. É o cenário principal do enredo e dos episódios da nossa vida. A casa nos ajuda a fincar raízes neste mundo e em nós mesmos. Conserva nossa história, acolhe os objetos que são a memória física das nossas alegrias e das nossas tristezas, das nossas conquistas e dos nossos malsucedidos.
É o espelho dos nossos hábitos, o abrigo dos nossos medos. A nossa fotografia. É da condição humana criar um habitat sobre o mundo natural. Cercar um território e se instalar nele. Reconhecê-lo como o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados. Defini-lo como ponto de partida e de chegada para nossas aventuras e ousadias. Quando alguém deixa sua casa, geralmente, já se projetou sobre uma outra, ou necessária, ou desejada. Já preparou sua partida para a nova moradia e, habitualmente, leva consigo para o novo lar coisas da casa antiga. Âncoras.
Mas, numa tragédia como em enchentes, guerras, acidentes como esse recente nas obras do metrô em São Paulo, nossa casa pode ser arrancada de nós. Sem aviso e de repente. Ainda que parentes e amigos nos acolham, que sejamos abrigados em hotéis, o sentimento é de desolação e de exílio.
A casa, subitamente subtraída das mãos e dos olhos, leva junto o passado, o presente e o futuro dos seus moradores. Leva a vida e a história. Perder a casa é se perder de si mesmo. Políticos, engenheiros, empresários, construtores... pensem nisso: ajuda, ressarcimentos e desculpas não devolvem às pessoas seu lugar no mundo.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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