São Paulo, quinta-feira, 26 de abril de 2007
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Higiene

Cruzada contra os germes

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

A dona-de-casa Marisa Pessanha, 59, é maníaca por limpeza. Quando chega em casa, precisa trocar imediatamente a roupa para não espalhar os germes da rua no ambiente. Após trocar os lençóis, fecha a porta do quarto, para que ninguém sente em sua cama. E se o marido convidar para passear mas a casa não estiver em perfeita ordem... Ela opta pela faxina.
Para quem, como Marisa, é aficionados por limpeza, "armas" não faltam. A indústria da higiene lança constantemente novos produtos que prometem mais brancura, mais eficiência, mais perfume e menos micróbios.
Esse arsenal acaba de ganhar mais reforços com a chegada, ao mercado brasileiro, de produtos que já vêm com proteção antimicrobiana. Vão desde roupas, alicates de unha, potes e talheres a pisos, banheiras e tampos de mesa. Todos enriquecidos com alguma substância (nanopartículas de prata, por exemplo) capaz de matar os fungos, bactérias e vírus que se aproximarem.
O discurso é a manutenção da saúde, mas especialistas questionam os benefícios apregoados. A preocupação é que a busca por um ambiente asséptico nos torne cada vez vulneráveis a doenças.
"Temos que fazer com que as pessoas possam ter contato com microorganismos para desenvolverem suas defesas. Se elas viverem numa bolha, terão problemas quando entrarem em um ambiente normal", alerta o médico Wilson Tartuce Aun, presidente vitalício da Asbai (Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia).

"Casa antimicróbios"
Os produtos antimicrobianos formam um grupo em ascensão em outros países. Nos Estados Unidos, é possível encontrar até mouses e teclados de computador, canetas e brinquedos com essa característica. No site da Agion Technologies, que atua no setor, é anunciado um de seus mais recentes lançamentos: o telefone celular da Motorola com proteção antimicrobiana.
"Viajamos muito para feiras em outros países e começamos a ver muitos produtos com esse tipo de proteção incorporada, até mesmo escovas de dente", conta Edison Luiz Anholon, gerente de desenvolvimento de produtos de louça da Deca.
Instigado pela idéia, ele se uniu à Microban para o desenvolvimento de assentos sanitários com essa característica. A empresa, de origem norte-americana, tem, entre outros projetos, uma parceria com a Brastemp para a criação de geladeiras antimicrobianas. No Brasil, tem como clientes a Tramontina e a Plasútil.
Na tecnologia utilizada, o que gera a morte do microorganismo é a perfuração da parede celular. O processo, segundo o engenheiro Toshiaki Ouchi, diretor comercial da Microban, dura toda a vida útil do produto, mas não afeta as células humanas ou de animais.
"Todos os consumidores têm consciência de que é melhor ter menos bactérias", afirma Ouchi. "[Esses produtos] não vão proteger das doenças. Mas trazem mais tranqüilidade para o consumidor."
O engenheiro é o melhor exemplo dessa busca por uma maior tranqüilidade em relação aos germes. Ele está construindo em Bertioga, no litoral paulista, uma "casa antimicrobiana". Do piso ao telhado, passando pelo rejunte dos azulejos, pela caixa-d'água e pela bancada da cozinha, tudo será feito com essa proteção. "É um projeto pioneiro no mundo", orgulha-se.

Bactérias mais resistentes
Para Renato Grinbaum, membro do comitê de antimicrobianos da Sociedade Brasileira de Infectologia, esse tipo de preocupação está relacionado a noções erradas sobre as bactérias. "Essa paranóia não é necessária. Existem bactérias às quais nosso corpo já está acostumado e que nos protegem de outras bactérias mais agressivas. Devemos preservar essa flora", afirma.
Ele cita como exemplo as peptostreptococcus, bactérias que existem normalmente na pele e na boca. Se elas forem eliminadas aumentam os riscos de uma infecção por salmonelas, bactérias que podem gerar intoxicação alimentar, afirma Grinbaum.
Além disso, a exposição constante a pequenas quantidades de desinfetantes e anti-sépticos acaba promovendo uma "seleção" dos microorganismos mais fortes. "Nós não estamos nos protegendo, mas propiciando o surgimento de bactérias mais resistentes."
A associação direta entre a busca por assepsia e a resistência bacteriana é difícil de ser comprovada, diz o infectologista, mas é uma das principais hipóteses para o surgimento de bactérias difíceis de serem combatidas. É o caso da MRSA, um stafilococcus que surgiu nos Estados Unidos, encontrado em ambientes hospitalares altamente desinfetados. Pesquisadores descobriram que algumas cepas dessa bactéria possuem genes que a capacitam a remover o desinfetante de dentro de si antes que ele lhe cause danos.
Segundo Ouchi, da Microban, a tecnologia utilizada pela empresa não é tóxica e não deixa as bactérias mais fortes, mas, para Grinbaum, "não existe uma substância capaz de matar bactérias que não possa levá-las a desenvolver resistência".
Quando a infecção por um microorganismo muito resistente ocorre, a solução é misturar vários remédios ou adotar antibióticos de reserva, mais caros e tóxicos, que podem gerar lesões aos rins ou ao fígado.
Além disso, já existe um grupo de bactérias para as quais não há antibióticos disponíveis. "É um problema de saúde pública", afirma o especialista.
Outro problema constantemente apontado por médicos é que a proteção exagerada contra microorganismos atrapalha o desenvolvimento do sistema imunológico. Segundo Wilson Aun, da Asbai, as crianças recebem os anticorpos por meio do leite materno até os seis ou oito meses de idade, quando o organismo começa a produzir sua própria defesa.
A partir daí, nosso sistema imunológico vai ficando cada vez mais completo. "Cada agressão bacteriana ou virótica ajuda a formar a defesa do organismo", diz Aun. Quem não passa por isso, diz Aun, fica menos preparado para enfrentar as contaminações seguintes. "Quando pessoas que crescem em fazenda têm alergia respiratória, o quadro é menos intenso nelas do que naquelas que foram tratadas com excesso de limpeza. As crianças têm de se expor, ficar resfriadas."
A alergista Fátima Emerson ressalta, porém, que, nas grandes cidades, as crianças se exercitam menos, comem pior e ficam mais tempo dentro das casas, que se tornaram menores e menos arejadas -fatores que, somados à poluição, contribuem para uma maior vulnerabilidade às alergias respiratórias.
Mas, apesar de indicar alguns cuidados específicos de limpeza para quem tem asma, ela também discorda do uso de objetos com proteção antimicrobiana -que considera "irrelevantes"- e vê problemas no uso de sabonetes com ação bactericida e na utilização excessiva de materiais desinfetantes. Ambos, afirma, podem levar a irritações na pele (ver matéria na página XX).
Embora sejam indicados para algumas pessoas, sabonetes com ação antimicrobiana não devem ser usados aleatoriamente. "Isso é perigoso", afirma Grinbaum, para quem a crença de que essa proteção é necessária é apenas fruto de marketing. "Quando você mostra uma criança toda suja e a mãe limpando o filho com o tal sabonete, você está criança necessidades -passa a mensagem de que ela será uma mãe melhor se limpar o filho com aquele produto."
O triclosan, presente em sabonetes anti-sépticos, é um irritante potente, afirma a dermatologista Ediléia Bagatin, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Géis para limpar as mãos, muito comuns, também podem trazer problemas, afirma a dermatologista: o álcool, presente em muitos desses produtos, retiram o manto de lipídio da pele, ressecando-a. Utilizados de forma esporádica, não causam danos, embora sejam desnecessários. Usados constantemente, podem deixar a pele tanto vulnerável à penetração de bactérias quanto mais propensa a irritações.
A administradora de empresas Andréa de Carvalho Treu, 35, sentiu na pele os efeitos indesejáveis do excesso de assepsia. Obcecada por higiene, houve uma época em que tomava vários banhos por dia, sempre com sabonetes anti-sépticos, "os mais fortes que eu encontrava", diz. O resultado não foi uma maior proteção contra supostos agentes infecciosos, mas uma alteração no pH da sua pele e o surgimento de alergias sérias, que a obrigaram a um tratamento médico. E a nunca mais usar sabonetes potentes, além de ter de restringir o número de chuveiradas diárias.
Para controlar seu furor anti-sujeira, Andréa conta com o auxília de um terapeuta. "Na terapia, estou aprendendo a não perder tanto tempo com essas coisas [de limpeza]. Antes, era a toda hora. Por exemplo, eu tinha aqueles géis para limpar a mão em todos os lugares -no carro, no escritório, em casa- e usava sempre. Agora, só de vez em quando."
Outra companheira constante dos fãs da faxina, as luvas de látex nem sempre funcionam -o material também costuma gerar irritações. "Os laboratórios já estão substituindo essas luvas por outras, de vinil, que é um material menos sensibilizante." Para quem usa em casa, a dica é usar outra luva, de tecido, por baixo.
Os problemas não se restringem à pele: materiais voláteis, como água sanitária e produtos em spray, podem gerar alergias ao serem inalados, afirma Bagatin.
Que o diga Marisa, após um surto de limpeza no qual resolver "desinfetar" a casa inteira, a dona-de-casa, que tem bronquite, foi parar no hospital. A crise foi tão forte que ela ficou três dias hospitalizada. Depois do susto resolveu, contra sua vontade, pegar mais leve na limpeza. "Hoje utilizo produtos suaves, sem perfume ou cheiro forte. Faço a faxina básica da casa. Fica tudo limpo, mas não é a mesma coisa que limpar com tudo o que tenho direito", lamenta.
A chegada de um novo morador à casa também obrigou Marisa a abrir mão dos produtos de que tanto gosta. Seu cachorrinho, de quatro meses, é tão ou mais alérgico do que a dona. Assim, desinfetantes fortes foram definitivamente abolidos. Mas o filhote não deixa de entrar na dança da limpeza: tem de tomar dois banhos por semana, no mínimo.
A higiene é realmente fundamental para evitar diversas doenças. Não por acaso, a palavra se origina de Higéia, nome da deusa grega da saúde. No século 19, o médico húngaro Ignaz Semmelweiss reduziu drasticamente a morte de recém-nascidos no Hospital de Viana com uma simples regra: os médicos deveriam lavar as mãos com água clorada.
Mas no dia-a-dia, a melhor proteção, por mais simples que pareça, continua a ser água e sabão.
(COLABOROU IARA BIDERMAN)


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