São Paulo, quinta-feira, 29 de novembro de 2007
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Outras idéias - Wilson Jacob Filho

Preconceito

Pela primeira vez em muitos anos, dona Jane adentrou a sala sem o seu farto riso a enfeitar as frases perspicazes de quem sabe o que os outros estão pensando. Sua vivacidade surpreende a todos, mesmo antes de saber que ela está cada vez mais próxima de completar seu centenário.
Chama ainda mais a atenção quando fala de "suas crianças". É responsável por várias creches, que visita em meio a beijos e abraços daqueles que a distinguem como "madrinha". Aprendeu a lidar, como poucos, com as limitações. Por vezes, respeita-as, procurando outras soluções. Noutras, as enfrenta, tentando estabelecer novos limites. Nunca me lembro de tê-la visto desanimada. Daí minha surpresa por aquela entrada inusitada.
Há muito discutíamos sua acuidade visual. Nada muito restritivo, exceto para sua sensação de segurança em locais desconhecidos ou mal iluminados. O diagnóstico: catarata em evolução, cujo único tratamento seria cirúrgico. Nessa condição, a opinião do paciente é fundamental. Ninguém melhor do que ele para, conhecendo os riscos e os benefícios, decidir qual caminho seguir.

[...] BOA PARTE DA SOCIEDADE AINDA CONFUNDE A IDADE COM AS DOENÇAS E, POR ISSO, JULGA ERRONEAMENTE AS SITUAÇÕES INDIVIDUAIS


Na consulta anterior, comunicou-me que havia se decidido. Escolheu o oftalmologista, o hospital e a data da cirurgia, vindo me solicitar só os exames pré-operatórios e um relatório sobre suas afecções pregressas. Este, por ser muito breve, foi feito imediatamente. Saiu convicta, com a lista de testes. Tudo como deve ser feito: uma pessoa hígida, conscientemente preparada para uma intervenção, participando ativamente do que lhe possibilitará manter sua independência.
Mas um detalhe mudou o rumo da história. Como condição do plano de saúde para autorizar a operação, foi agendada uma "avaliação cardiológica". Após algumas perguntas e um rápido exame físico, veio o veredicto: paciente com 94 anos, diabética e hipertensa, não está em condições cirúrgicas.
Atônita, recebendo o papel sem explicações, veio buscá-las com quem a conhece há mais de 20 anos. Após acalmar-se, tendo a notícia de que a pressão arterial e os resultados dos exames estavam normais, ficou aguardando que eu desvendasse essa divergência de opiniões.
Liguei para quem emitiu o nefasto laudo, argumentando que a paciente nunca tivera aumento dos níveis pressóricos ou de glicemia e que seu estado de saúde era estável há pelo menos duas décadas. Laconicamente, respondeu: "Eu nunca autorizo cirurgia para quem tem mais de 90 anos!"
Disse à dona Jane que nem todos estão preparados para conviver com essa nova realidade: idosos saudáveis. Boa parte da sociedade ainda confunde a idade com as doenças e, por isso, julga erroneamente as situações individuais. Muitos chamam isso de preconceito. Prefiro acreditar que seja falta de informação adequada.
Fiz um relatório extenso, avaliando cada componente do seu organismo e enfatizando sua adequada condição de saúde. Cerca de duas semanas depois, recebi um telefonema com o habitual riso que faltara na última visita. Entre as considerações sobre o quanto tinha sido bem tratada na operação e de como todos se admiraram com sua vivacidade, salientou: "Estou feliz por ter feito aquilo que queria fazer".


WILSON JACOB FILHO, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br



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