São Paulo, quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
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NEUROCIÊNCIA - Suzana Herculano-Houzel

Para "ver" no escuro

Verão é tempo de chuvas de vento e, com as árvores que elas derrubam sobre os postes, de falta de luz aqui em casa. O escuro inesperado angustia as crianças, e tentamos acalmá-las lembrando-lhes que as coisas não saem do lugar só porque escureceu de repente. Os objetos têm permanência, como disse Jean Piaget.
Essa permanência, no entanto, não está nos objetos (os filósofos de plantão vão protestar, com razão, lembrando que os objetos têm, sim, permanência; mas a permanência deles é outra, que não depende de nós). O conhecimento continuado de um objeto que some de vista porque tudo escureceu depende de uma propriedade particular do cérebro: manter ativa a representação mental, ou imagem cerebral, dos objetos e de seus lugares em relação ao corpo quando eles somem de vista.
Manter essa representação consiste na atividade continuada, até no escuro, de alguns dos neurônios que respondem à visão de determinados objetos. Essa, aliás, é também a base da memória de trabalho -aquela que permite ler um número de telefone aqui e discá-lo lá adiante, ou, mesmo recorrendo a um papel, chegar ao escritório e lembrar que estávamos indo telefonar.
Neurônios que continuam representando objetos ao apagar das luzes existem, por exemplo, no córtex pré-motor, região responsável por preparar movimentos. Mas não adiantaria muito manter a identidade dos objetos em mente sem saber onde eles estão. Essa informação o córtex pré-motor recebe de neurônios do córtex parietal, também dotados de permanência, que integram a visão do ambiente e do corpo às sensações táteis e proprioceptivas do corpo em si, criando uma imagem espacial do corpo no ambiente que resiste ao escuro. Ficando quietos, como recomendamos às crianças até acharmos as velas, o mapa continua valendo e ainda sabemos onde as coisas estão.
É verdade que toda essa permanência não funciona tão bem quando começamos a andar no escuro, pois, sem retorno visual sobre nosso deslocamento, começamos a nos afastar do último mapa preciso conhecido e acumulamos rapidamente um grande número de erros em nossa nova imagem espacial cega. Foi assim que, no breu completo do apartamento, achei que já tinha chegado ao corredor quando ainda faltavam dois metros de parede. Meu nariz, surpreso de se descobrir no lugar errado, foi salvo por meu marido, responsável por 80% da alta tecnologia daqui de casa, vindo pelo corredor com uma luz de emergência que eu não sabia que tínhamos...


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de bem com o seu cérebro" (Editora Sextante) e do site O Cérebro Nosso de Cada Dia (www.cerebronosso.bio.br)

suzanahh@folhasp.com.br



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